terça-feira, 12 de junho de 2012

Vem do ser


Salvemo-nos todos ou não se salva ninguém. 

Fico conectado durante toda a madrugada de hoje, segunda-feira 11 de Junho de 2012. Aproveitei toda a noite para pensar e analisar as intervenções. Sinto que, se durante o projeto, não crio esse tempo para sentar, analisar e escrever, de nada servirá um diário que só contêm material objetivo, estilo jornalístico. É fundamental para mim transmitir as emoções que me geram cada momento na pista. Acredito que é essa energia que nos leva para a rua, que nos une, é ela que vai mudar o nosso rumo.

Depois de passar o diário de ontem, vamos com Pati para o restaurante popular da Estação Central do Brasil. Andamos pela Rua dos Inválidos, onde a obra da empresa mais importante do Brasil  está sendo construída. É um edifício enorme da Petrobras, que representa o último em arquitetura urbana, com detalhes que fazem qualquer um se sentir no futuro. Sua cor, toda cinza brilhante; seu estilo, todo moderno e automático, todo espelhado. O espelho nos edifícios têm uma razão de ser. De fora são para decorar, de dentro, para que os que estão lá não sejam observados.

O espelho reflete uma outra realidade que se funde naquela que o próprio monstro de cimento e ferro quer mostrar.  O futuro já chegou, aquele mesmo futuro que era descrito e fantasiado, é o que estamos vivendo. Hoje somos redes sociais, nos comunicamos com pessoas do outro lado do mundo de uma forma accesível e fácil. Hoje, com um aparelho que pesa, no máximo, 200g e que mede uns 10cm, podemos fazer ligações, tirar fotos, filmar, mandar um email, etc. As tecnologias nos servem, mas nos saturam e modificam. Antes adaptável à necessidade dos humanos, hoje faz com que os humanos tenham que se adaptar a ela.  

O mundo já deu milhares de voltas, mas existe em todo esse “show da realidade”, vários mundos dentro do mundo. E aqui estou eu, envolto num mundo que limita as pessoas a um espaço específico, defende o dormir dentro de um lugar fechado, comer comida sem antes ser experimentada por outras pessoas, ser serviçal a esse sistema. Neste mundo, as pessoas perdem outros valores. O mundo pode ser visto desde outra perspectiva se observado mais tempo desde a PISTA!

Vamos para o restaurante popular, são quase 14h.  A chuva começa a cair novamente, estamos com um guarda-chuva. Chegando ao restaurante, fazemos a fila. O paredão onde as pessoas esperam para entrar, também é formado por pessoas deitadas, dormindo debaixo de cobertores e rodeadas de restos de comida. O segurança retira a corda para que mais um grupo de esfomeados possamos entrar. Pagamos o nosso real, passamos a roleta e temos uma segunda fila, a do bandejão. Percebo que acabou o pão, a carne e o café. Pressinto que chegará o dia no qual as pessoas pagarão um real e receberão apenas o ‘bom dia’, as ‘boas tardes’ e, no máximo, um copo de água, se houver.

O restaurante se transforma num espaço que é às vezes estressante. O stress vem dos que chegam para comer e dos que aí trabalham. Todos parecem estar em ‘bondes’ diferentes, e esse jeito de não se tratar como igual parece que não é só pelas mesas do buffet que nos separam, nem pelos uniformes e salários. As funções são diferentes.   

Comemos e vamos embora. Passamos pelo Campo de Santana, onde vemos um monte de animais, diferentes, comendo todos juntos. Parecem estar à vontade, cômodos, e comunicados entre si. Estão aí para se alimentar, não existe relação de poder, simplesmente precisam se alimentar.

Vou andando sozinho para a Cinelândia. Chego na praça e encontro com a tia Patricia e o Mateus. Todas as coisas da tia estão arrumadas embaixo da igreja evangélica. Ela me pede para ficar cuidando suas coisas enquanto ela sai à procura de papelão para deitar na rua detrás. No meio da espera, aparece o Fran. Ele acaba de voltar de viagem, foi para um festival de jazz junto ao bloco que reinvidica a legalização da maconha, o Planta na Mente. Tenho conhecidos que são do bloco, pergunto ao Fran por eles. Fran conta a sua experiência de final de semana.

Fran vai para a praça e volta, ele tem um cigarro armado, o qual confunde o segurança da igreja que chega a falar conosco agressivamente: “Filhos da p... vão ter que sair daqui, vocês querem me esculachar no meu serviço, vocês acham que eu sou muleque, safados...”. Eu, deitado sobre as duas sacolas de roupa, levanto e tento explicar, mas a ignorância deixa as pessoas surdas. Tivemos que deixar o local, cruzar a rua e esperar a chegada da tia Patricia.  

Chega a tia com o Mateus e muito papelão para usar de colchão e criar o nosso quarto na rua detrás. Ela vai direto falar com o segurança. Eu,  Mateus e Fran vamos levando as coisas e nos acomodamos na Rua Álvaro Alvim. Arrumamos nosso espaço, Fran decide sair a dar seu rolê pela Lapa e fico com Mateus só um momento, até que ele sai a dar seu rolê de mangueio perto da sua mãe. Fico sozinho, ao lado de dois moradores de rua que dormem. Frente à nossa improvisada casa, fica um cinema pornô e um sexshop e videolocadora, que também funciona como espaço de pegação para homens. Fico observando todo o fluxo de pessoas que ali entram, minha observação é desde um lugar diferente e desde uma posição diferente.

Penso nos preconceitos da sociedade em quanto à homossexualidade. Faz uns dias falamos sobre isso com Sol e com Diego, e eles contaram de seu casal de amigos, que dorme no mesmo espaço que eles, na grama frente ao MAM, atrás de um estacionamento. Eles não têm problemas com população de rua. Lembro das travestis que moram nas ruas, a tia baiana e outra, que neste momento não lembro o nome. Além disso, sei de histórias de vários moradores de rua que tem relações homossexuais sem sofrerem discriminação alguma por parte de colegas e parceiros que moram nas ruas.

 Existe um preconceito interno em todos nós quando falamos de uma sexualidade minoritária que não reconhecemos e com a qual não estamos acostumados a interagir. O ser humano cria preconceitos daquilo que não conhece, é uma forma natural de se defender. Sendo assim,  a rua é um lugar de maior liberdade dentro dos parâmetros que o sistema estabelece e com os quais ainda não conseguimos romper 100%. Na rua, nunca senti discriminação por ser de outro país, nem tampouco das vezes que me defini como sendo ‘panssexual’ .

Fico observando os homens saírem do espaço que tem o sexo como principal atrativo. A tia chega com o Mateus, já deram 19h27, já é hora de ir pegar os salgados. Vou andando rápido, combinei de encontrar com o Fran lá. Chego e ele está sentado, dormindo, esperando a entrega dos salgados, que começam a ser servidos por duas funcionárias. Na hora de ir,  chego a escutar de uma delas “vem desde a china a buscar salgados”, acho que foi por mim. Sinto pena por seu pensamento, ela não chegou a ter tempo para pensar e analisar sobre um outro erro maior, a criação de fronteiras.

Volto andando pra Cinelândia com o Fran. Pati me manda uma mensagem, convidando-nos para um show de graça no CCBB. Combinamos de encontrar-nos na praça dos professores, onde vou pegar o rango com o Fran. Antes, levo para a tia uns salgados.  

O Fran e eu temos uma relação de amizade muito especial, como a que tenho com os amigos do OcupaRio, os quais me ajudaram também a construir este projeto. Entre nós, temos um afeto que se demonstra com o corpo: nos abraçamos, beijamos, etc. Estou botando um brinco no Fran com o símbolo da maconha, ele chega empolgado depois de sua viagem com os militantes do Planta na Mente. Nesse instante chega o rango, são dois carros que trazem sopas em copos plásticos e pão com água. Na hora da fila, um menino me cumprimenta. Ele é de Minas Gerais, a gente já tinha se cruzado em outras oportunidades. Ele me dá um abraço.  Sinto uma energia sexual forte vindo dele, sinto que quer me conquistar.

Me sento em um dos bancos da pracinha com o Fran. Ele não para de olhar para a nossa direção. Está acompanhado de uma mulher grávida que já vi antes também.  Chamo ele para conversar, ele me conta que está dormindo numa árvore no Flamengo, que a a moça e ele são só amigos e que ele está se sentindo muito só na pista.Convido ele para assistir o show com a gente. Ele fala que não gostaria de deixar a menina sozinha, ela tem problemas mentais e está sem ninguém. Ele não para de olhar para mim e sorrir, ao ponto de me sentir um pouco incomodado. Ele é um cara bonito.

Ele volta a sentar com a menina. O Fran começa a enrolar um baseado, peço para ele ter muito cuidado já que o lugar está cheio de policiais. Ele encontra maior proteção no banco onde estão o menino e a moça grávida e vai pra lá. Fico esperando no banco. Ao meu lado, está uma sacola preta. Pergunto a todos de quem é e uma mulher responde que são as sacolas que a padaria deixa lá. Abro e encontro duas grandes bolsas de pão, que guardo para levar para a tia Patricia.

Pati chega e vamos andando, nós três, em direção a um lugar onde possamos fumar tranquilos. Vemos que está passando outro rango, fazemos fila e pegamos mais uma sopa,  estas vêm em caixas de leite vazias. Eles dão dois pães franceses e um copo com água. A Pati começa a comer. Eu e Fran, sem fome, guardamos para alguém que queira. Voltamos os três para a praça dos professores.  

Oferecemos as sopas. Nesse momento, nos encontramos com Paulista, um morador de rua que trabalha de transporte com seu burrinho, ele também é catador.  Acendemos nosso beck e fumamos sem ninguém perceber. Fico num estado de necessidade de escrever, fumar me faz refletir mais ainda sobre as coisas que acontecem na rua.  Começamos a debater sobre sexualidade, parece que vai ser o tema de hoje. A conversa começa por uma opinião do Paulista sobre o brinco do Fran.

 Isso me leva a refletir sobre como a sociedade se desespera ante a diferença. Sinto que às vezes não estamos preparados para receber as diferenças por causa de preguiça para  discutir, para compartir, para falar, para ouvir, para tentar chegar a um fim, uma melhor convivência entre todos. Procurar os pontos que nos unem, sem esqueçer a nossas diferenças.

Voltamos para a Cinelândia. Chega o André, um parceiro que vai a gente pro show. Na mão, carregamos um stencil com uma frase “Choque de Ordem Mata Pobre”, a qual colocamos em algumas paredes. O impacto visual como expressão e militância.

No meio do show, me sinto esgotado, volto andando com a Pati para a Cinelândia, onde procuro papelão para deitar e finalizar mais um dia na pista.

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