domingo, 17 de junho de 2012

Zona de Conforto


Faz-me drogar: a proibição.
Faz-me roubar: a apropriação.
Faz-me estuprar: o preconceito.
Faz-me violentar: a ignorância.

Acordo tarde para o café da manhã que dão na catedral católica do centro do Rio, aos sábados. O café é servido  8h, horário que acordo dentro de uma barraca do Ocupa Rio. Hoje é 16 de Junho e tem uma galera lá fora ainda acordada de ontem. Saio da “zona de conforto”, onde a proteção da lona me esconde. Sou invisível para quem passa por aqui afora. Agora me encontro dentro, dentro de uma barraca.Dentro-fora,fora-dentro.

É sábado e, como o Chile falou, vai ser difícil o rango de hoje. Fico deitado em companhia do Gil. Entram mais tarde dois colegas muito especiais, o Street e a Mika. Eles namoram desde o acampamento passado de Ocupa Rio, na Cinelândia. Eu convivi já há um tempo no mesmo apartamento que eles, temos intimidade. Eles me oferecem o que vai ser hoje meu café da manha, dois biscoitos e um pouco de guaraná para passar.
E porque começo falando de comida? Simplesmente porque a segunda indispensável atividade para o morador de rua, é a comida. A primeira atividade mais importante, eu acredito que seja ocupar o espaço público como espaço natural. O morador de rua corre atrás de sua comida todo dia, isso já se converte na maior proporção de tempo do dia.

O Chile me informa que vai ter salgados 14h no mesmo lugar onde pegamos sempre, na Rua Miguel Couto. É meio dia e minha fome começa a aumentar, penso só em comer. Insisto na sensação de que o espaço de acampamento não está com uma energia boa, algo me incomoda aqui. As pessoas aqui falam, discutem, dormem, pensam, olham para o sol por um tempo; riem, choram, sofrem, bebem cachaça...

Estou sem vontade de ir para a zona sul, estava planejado estar hoje lá. Mas um fluxo de energia impede que eu vá. Esse fluxo se aumenta quando pergunto para o Chile se ele sabe de lugares onde ficam geralmente moradores de rua naquela zona. Ele me fala que não tem quase ninguém, e que isso tem a ver com o fato de darem prioridade à “limpeza” naquele lugar. Ou seja, a zona sul tem muito menos população de rua que o resto da cidade e isso é relacionado à discriminação e ao ataque do choque de ordem naquela zona.

Vamos com o Chile a pegar os salgados, tento voltar rápido, já que tem um pequeno espaço de tempo no evento Cúpula dos Povos onde vai se falar sobre população de rua. Penso em apresentar o Paz Na Pista lá.
Pego os salgados, volto andando, já são 15h e entro no Aterro do Flamengo onde acontece o evento. Defino numa palavra “INCOERÊNCIA”.

Grandes tendas cheias de cadeiras plásticas brancas. Empresas e até indústrias com tendas comerciais, de marketing e divulgação de seus produtos. Índios vendendo seus artesanatos, vestidos com as suas vestimentas típicas. Muitos estrangeiros. O capitalismo verde em sua máxima potência. Minha forte sensação: “esse não é todo o povo, o nome não combina com o evento”. Fico um instante procurando a globa do debate. Chego lá mas me falam que aí não é, e que não estão sabendo da assembléia que estou querendo assistir  “Assembléia do povo de rua”.

 Saio do espaço que antes de ser ocupado pelo evento, era também ocupado por moradores de rua. Mas agora só uma parte do povo ocupa esse lugar. O MAM se converteu num espaço de convivência para uma fração de povo. A cidade parece mais simpática com os visitantes que com seus habitantes. A cidade está pesada, o Rio está contaminado.

Passo pela ocupação do movimento Ocupa Rio, me encontro com as irmãs gêmeas e troco uma idéia. Debo me comenta que “estão sentindo que o diário está ficando repetitivo”, penso ao respeito. Ela acha que saindo da “zona de conforto” a história vai mudar. Saio andando, refletindo ao respeito...

Zona de conforto.
Do conforto à experiência.
Do projeto à realidade.
Da realidade aos meus pensamentos.
Rua, casa. Zona de conforto?
Mas também o “show da realidade” pode mentir, e de fato mente.
Diário= Minhas idéias e conceitos através da experiência. Mas também escuto.
Devo escutar para planejar.
Fragmentos. Escrevo meu diário.
Analiso e respiro um ar que chega seco e sem conforto.
Procuro a “Zona de conforto” mas onde?
“Confortar” o mundo, descobrir a minha zona.
Dormir em papelão e depender de comida das ONG para comer.
Zona de conforto?
Intervenho em espaços de caráter público, com perigo de ser recolhido pelo próprio estado.
Zona de conforto?
Centro do Rio de Janeiro é o espaço de maior quantidade de moradores de rua.
Zona de conforto.

Estou precisando de um banho, no MAM está impossível, a polícia ocupou o espaço em parceria com aquela Cúpula. Não está permitido mostrar a realidade, ela deve ser escondida por alguns dias. Ando em direção a Santa Teresa, na Rua Francisco Muratori, onde existe uma bica de água, a qual é utilizada por moradores de rua que dormem sobre as pedras desse lugar.

Chego ao espaço da bica, cumprimento o grupo de homens que estão ali. Percebo que estão os 5 bêbados e que tentam realizar atividades com a bica, como lavar roupas, tomar banho, limpar o espaço, etc. Encho um balde com água, piso sobre o pedaço de cimento que simboliza uma calçada. Pela rua, passam os ônibus com os passageiros em direção ao bairro de Santa Teresa, olhando para a gente. Alguns até chegam a tampar seus rostos, para evitar ver. Tomo meu banho tranqüilo, espero um momento para me secar.
São 16h40 e vou em direção a Casa França Brasil, a usar sua máquina para passar meu diário de hoje. Chego a Casa França, tenho muito material para passar. Faço uma primeira edição e mando para Pati fazer a edição em português. Aproveito para me comunicar nas redes sociais e divulgar meu trabalho.

Vou andando em direção ao Castelo, onde me integro a um grupo de moradores de rua para esperar o rango passar. Já são 20h46 e já passou um rango. Tenho a esperança que passarão mais ONGs entregando comida e bebida. Chega um carro, mais de 50 pessoas correm a buscar a comida. Na fila, chega mais um carro no outro quarteirão. Divide-se quase na metade a quantidade de pessoas. Todos correm. Agora posso perceber que na realidade somos mais de 100 pessoas atrás da comida das ONGs. Pego minha quentinha com sopa, deixo com uma tia. Vou procurar a outra quentinha. Espero numa fila enorme, pego minha segunda quentinha e uma água. Sento, como, me despeço e vou embora.
Sento na Praça dos Professores, assisto a uma desapropriação de coisas que estão dentro de um carro. Vejo que o cara é muito rápido, ele ganha objetos para vender. O sorriso mostra o prazer de desapropriar outros dos objetos.

Bebo água, canto e começo a escrever este diário Na Pista...