sábado, 16 de junho de 2012

Dia-dificuldade.

Normal,
Normatividade,
Normatização,
Norma,
Não.


O emprego para quem mora na rua trata-se de possibilidades, mas do que nada as que se relacionam com o bem estar. O bem estar que sentem os moradores de rua do Rio de Janeiro acredito que tenha mais a ver com a liberdade. A maioria dura pouco tempo nos empregos, a rua pode ser vista como um vício, mas os empregos também. 


Os empregos que existem entre a população de rua são mais  independentes, eles variam entre: reciclagem, na sua maioria de latinhas e papelão; desapropriação de pertences ou roubo e venda dos mesmos; venda de drogas em quantidades menores; prostituição, não existe diferença quantitativa entre homens e mulheres; venda de bebidas, ou “camelôs”; artesanato; pedir dinheiro ou “mangueio”, não existe diferença nenhuma entre mulheres, homens, crianças e idosos. Senão também existe o “trampo” ou “freelance” em inglês como a maioria chama aqui, que significa trabalho momentâneo.


Hoje é sexta-feira, dia 15 de Junho. É de madrugada e me encontro acompanhando na intervenção que o movimento Ocupa Rio, do qual participei o ano passado, está fazendo. Eles tomaram a decisão de ocupar a Praça Marechal Deodoro( praça do cavalo). Ela fica ao lado da Praça Paris, perto do passeio do Aterro do Flamengo.


Já passou a noite de quinta-feira, vejo a cidade cheia de eventos e de visitantes do mundo inteiro. Minha pergunta é como se vê o Rio+20 desde a perspectiva de um morador de rua. A realidade é que para a maioria significa mais um evento. Rio de Janeiro é a cidade de eventos, o estado adora criar evento para aumentar o número de turistas e assim poder aumentar também os números na economia do estado e da economia privada. Porém, sabemos que ela é distribuída de forma injusta e que, além disso, castiga aqueles que não participam de nenhuma das duas, neste caso os moradores de rua. A cidade tem que ficar limpa, e a limpeza para os governantes significa não ter pessoas ocupando a rua, dormindo na rua, pensando na rua, transformando a rua e compartindo a rua sem a autorização deles. A cidade faz eventos e tampa a sua naturalidade, as diversas realidades.

Vou dormir de madrugada, na grama da praça. Estão comigo companheiros que conheço da ocupação do ano passado. A tia Patricia chega com o tio Marcos e o Mateus para passar a noite com a gente na sintonia de resistência. Resistência de ocupação da pista que para esta nova versão do movimento nasceu ontem, para mim já há 9 dias e para moradores de rua há décadas.


Acordo cedo, o choque passou por aqui e ameçou tirar as barracas da manifestação. A história é circular para mim. A polícia e suas redes são uma ameaça constante, eles aparecerem por aqui não me faz muita diferença. A tia Patricia prefere sair do grupo por causa do Mateus, ela acha que está em risco se eles são levados para o abrigo e separados.


Acordo o Gil e o Dii, Dii é um colega que conheci o ano passado na ocupação da Cinelândia e logo ficamos  amigos. Ele é uma figura também querida por meninas que moram na rua. Ele tem 21 anos, é cabeleleiro e mora numa ocupação no bairro de Glória. Dii é homossexual e sua estética é bem particular. Ele é uma pessoa muito especial.


Acordados os três, determinamos ir como um “bando de viados” para a igreja evangélica Cristolândia. Hoje tem café da manhã, banho, roupa, almoço e, claro, vamos tentar dar o nosso show no momento musical do culto.


Chegamos e a fila está enorme, temos que esperar. Não paro de observar a cara do Gil que está toda escrita de tinta pilô preta. Acho que hoje vamos dar muito o que falar aqui dentro.


A fila começa a andar e vejo o Dii com cara de quem nunca ia se imaginar aí dentro. São 9h45, subimos as escadas, damos nossos nomes, sentamos na frente das fileiras de cadeiras e começo a perceber os olhos do resto se instalando sobre a gente. Somos três viados dentro de uma igreja evangélica, um todo pintado e os outros dois que não param de fazer gestos que podem incomodar ao grupo heteronormativo. 


Olhamos para os homens querendo seduzir. Cantamos as músicas que o Gil segue muito bem as letras pela sua experiência nessa religião. Batemos palmas e dançamos. O resto dos participantes se mantém quietos, a maioria dormindo. Um homem que mora na rua começa a se incomodar com a atitude de Gil de cantar em voz alta as músicas. Ele começa a ameaçar mas não faz nada, sei que ele não vai querer fazer nada. 

Chega o café com leite e os dois pães com manteiga que dão de café da manhã. Comemos e chega o momento do culto. Eu e Dii não paramos de falar sobre os homens que moram no lugar e os que trabalham como voluntários ali. Seguimos com os olhos todos os que passam pela frente. Acaba o culto e ficamos um bom tempo esperando que sejamos chamados para o nosso banho. Chega a nossa vez e vamos para onde pretende ser o setor mais interessante para a nossa intervenção, como em outras oportunidades, chega o momento do banheiro.


Chegando lá, fazemos o procedimento como nas vezes anteriores. Subimos as escadas, pedimos nossa muda de roupa, entramos no quarto, sentamos na fila de cadeiras, falamos da nossa vida, perguntamos sobre a vida dos meninos, tomamos banho, trocamos de roupa e saímos. Ao descer, Gil e Dii saem a fumar, eu fico sozinho sentado esperando o almoço. Nesse momento, se aproxima o menino que cuida da porta do banheiro, ele é um negro lindo de uns 25 anos. Senta ao meu lado e começamos a conversar, ele me conta que está aí por causas de drogas. Ele estava no exército e saiu pela mesma causa. Ele começa a filosofar da vida, sobre seus sentimentos e me fala que a rua é perigosa e que lá mora o diabo. Eu, claro, contradigo a sua visão e justifico que são as pessoas que alimentam a rua. Que a rua é o Diabo mas também é Deus. Que a rua é tudo e todos. Chegam os meninos e a conversa começa a ficar como um debate, cada um com a sua opinião quer expor e contradizer a opinião do outro sem convencer, mas sempre se justificando. O espaço está rodeado de moradores de rua, eles escutam a conversa, ninguém entra, ninguém opina, todos calam. Na hora do culto, dormem ou escutam mas não parecem acreditar. Na hora de chegar o almoço comem como a gente, não falam nada e saem. 


Na saída do lugar, somos interrompidos por um senhor, ele se apresenta e começa perguntando se somos homossexuais. Gil responde que sim, eu respondo que não e Dii responde com um som que pode ser de afirmação com a boca. Ele começa a falar querendo nos convencer que dentro de nós temos o demônio por termos relação com pessoas do mesmo sexo. Fala que isso está errado e que ele pode ajudar-nos com a palavra de Deus que fala na Bíblia. Ele quer nos convencer, nos negamos e começamos a discutir com ele. Ele insiste de outras formas, nos convida a orar com ele. A discussão chega até a porta, eu estou com vontade de ir ao banheiro. A discussão continua, um se justificando contra a palavra do outro. Soa uma sirene, os meninos e voluntários que estavam na sala sobem para o quarto. A gente para com a discussão, desce as escadas e sai andando. No caminho, conversamos sobre a discussão, tenho dúvidas da próxima intervenção nesse lugar.
A gente concorda, a gente existe, a gente intervêm, a gente é gente como a gente.

Entramos no Campo de Santana, tento usar o banheiro que está fechado, mas o homem pede para eu mijar no beco atrás do banheiro. Continuamos andando para a ocupação. Chegamos na praça, chegam a Arieli e uma amiga dela que também mora na rua. Eu deito e durmo um pouco. Num momento, acordo com gritos, vejo o Gil deitado ao lado meu apanhando por um grupo de policiais. Minha confusão faz que eu não entenda muito bem o que está acontecendo. A polícia vem com cavalos e eles vêm encima de mim, me levanto e saio correndo. A multidão da ocupação se aproxima, tiram fotos, Gil começa a ficar nervoso, responde a polícia. O dia começa a se revelar, hoje não vai ser um bom dia.


Todo mundo começa a correr, André tenta falar com a polícia que corre atrás do Gil. Ele tenta fugir mas é cercado por companheiros que recomendam que fique no espaço perto das câmeras que estão filmando e fotografando. Na minha cabeça é tudo uma confusão, consigo dirigir-me para a polícia, sou interrompido com um grito direcionado para todos de parte de André, colega nosso. A negociação não é suficiente, eles querem levar o Gil. Vejo um uniformizado pedir reforços, o reforço não tarda em chegar. Numa nova tentativa de expressar minha posição como testemunha da violência, sou outra vez interrompido por André que se dirige à mim. Acerco-me ao Gil que me pede seu tênis, corro para o espaço onde estávamos deitados e pego suas coisas. É tudo um grande confusão. Fico assustado com o que possa acontecer com o Gil, os policias justificam a agressão falando que ele os insultou e que corresponde à “desacato à autoridade”. 


Gil é levado junto ao André para a 9a. DP. Depois de vários recorridos entre a casa de Pati e Debo, a quinta DP e o caminho para a outra delegacia, chegamos à instituição. Pati, Debo, Fran e eu aguardamos  lá fora por uns instantes. Entramos à delegacia e começamos a discutir sobre o que aconteceu. A conversa se torna pesada e saio para escrever o meu diário.

A polícia reprime, a polícia quase parece um insulto constante para a sociedade. Estou totalmente em desacordo com a institução policial desde seu nascimento sem diferenciar por melhor ou pior por agredir mais ou menos. Eles violentam sistematicamente, todos sabem disso, mas fica entre a gente se estamos ou não de acordo com esse tipo de sistema. O morador de rua é para a polícia uma ameaça constante, escuta falar ações violentas feitas por funcionários dessa instituição com justificativas ridículas. O principal sofrimento sentimental do morador de rua é a discriminação da sociedade, mas o sofrimento físico deles é a violência física e ameaça de extermínio que estão tendo de parte da polícia controlada pelo estado. Existem diferenças entre policiais e policiais sim, mas enquanto a instituição não mudar seu foco, sua forma de agir, seu sistema, etc; estarei em desacordo com ela e com todos os que trabalhem e apoiem ela. Tenho certeza que não existe uma sociedade justa , menos violenta e não existe um mundo melhor, enquanto exista a instituição policial.


Chego na casa das irmãs Pati e Debo, começo a escrever meu diário. Estando pela metade dele, vejo a Debo e o Fran, que começam a brincar com maquiagem. Me faz lembrar da infância. 


Debo recebe uma ligação de sua irmã gêmea, a Pati, que informa que acaba de morrer uma menina do acampamento do Ocupa dos Povos. Eu fico angustiado demais com a notícia. Está difícil passar o diário, quero terminar ele rápido. 


O dia definitivamente está me dizendo que não ia ser legal e os acontecimentos revelam tudo isso. Minhas energias abaixam, quero sair à procurar de uma comida e deitar para dormir e terminar com ele.
Termino de escrever o diário, não estou me sentindo nada bem. Desde ontem, quinta feira, minhas energias não estão iguais e percebo isso em muita gente. Coincide com o início do evento Rio+20, Cúpula dos Povos e a iniciativa do Ocupa rio, o Ocupa dos Povos. 


Vou andando para a Cinelândia, não vejo ninguém, vou para a praça dos professores, encontro um grupo de moradores de rua que estão sentados esperando passar o rango. Me falam que um rango já passou, mas que está por passar outros. Prefiro caminhar até o Castelo.

Luz, Rua e ação!
Ando pelas ruas do Rio de Janeiro. Transformam-me.
Levo nas minhas costas uma mochila. Pesa-me.
As luzes dos postes iluminam só uma parte do espaço. Deslumbra-me.
Os edifícios ocupam as alturas. Surpreende-me.
Os carros passam como máquinas descontroladas. Incomodam-me.
Quase não tem ninguém na rua. Deliram-me.


As pessoas que ficam andando por aqui nestas horas são moradores de rua desta zona. Acompanham-me.
Chego no Castelo e sento a esperar a chegada de uma ONG com comida. Me chamam lá atrás, “Paz!”, “gringo!”, é o Familia que está deitado com uma galera. Pergunto para eles se já passou o rango e me respondem que sim, mas que está por passar outros. Um deles me dá uma quentinha, agradeço e com pressa a abro. Como todo o arroz, o feijão, o macarrão com salsichas e a farofa. Chega um carro com outras quentinhas, neste caso é uma sopa. Como e converso com a galera. Passa um homem e entrega uma moeda para cada um. Me despeço e saio andando em destino ao acampamento do Ocupa Rio. Chegando lá, a energia se torna pesada, é claro, estou na frente de pessoas angustiadas, tristes e desesperadas. Uma menina morreu esta tarde depois de ser atropelada por um carro, cruzando a rua. As mortes inesperadas são mais dolorosas, são mais difíceis de acreditar.


Esta noite vou a dormir cansado, triste, sem muita vontade de nada. Quero simplesmente dormir e esperar para que o amanhã me de outras histórias Na Pista.