sexta-feira, 22 de junho de 2012

Resistência


Estou te olhando, estou sentindo que, juntos, vamos a fazer algo. Não tenho certeza o quanto vamos a modificar o nosso mundo, mas sim sei quanto poderemos modificar-nos. Estamos juntos, um olhando com cumplicidade para o outro. Existe alguma coisa em nós que nos une, quiçá a rebeldia, quiçá sermos o oposto, quiçá a pista ou tudo isso junto. Juntos, estamos juntos!

Penso e sinto que devo continuar aqui. Estou faz 15 dias na Pista, já a metade dos 30 dias do projeto. Estamos faz 5 dias acampando com a Ocupa dos Povos. A população de rua da Cinelândia se une na luta, eu não quero ficar por fora. Acho que por aqui existe a possibilidade de pautar atenção ao debate sobre morar na rua, que vem se postergando em todos e quaisquer debates dos movimentos sociais. A população de rua do Rio não tem um movimento social que reinvidique os seus direitos. Algumas organizações se articulam, criam iniciativas, mas é a minoria que participa. Mesmo desde o momento de querer institucionalizar aqueles encontros onde se discute a população de rua.

É como querer, da mesma forma, inserir em algum lugar do sistema a um outro sistema que responde por si mesmo, mas também que sabe levar a sobrevivência da rua de um jeito prático e de ação direta, sem a necessidade de se articular com a mesma organização de um movimento social. Funcionando mais de um modo prático e simples, atuando nos momentos em que a necessidade aparece, acompanhando-se uns aos outros nos momentos de emergência e ataque invasivo do poder político.

Estou no dia 21 de Junho, estou escrevendo o diário onde tentarei descrever os dois últimos dias que vivi na rua (19 e 20 de julho), acompanhando de perto tudo o que acontece na ocupação do Ocupa dos Povos, mas também o que acontece nas ruas do Rio de Janeiro, no momento do evento Rio+20.

Hoje acordo na barraca de um companheiro. Vejo como a galera que conheço da rua vai se somando à manifestação, desde ouvintes, desde militantes, desde humanos. Acompanhar de perto, unir-se, esse parece ser um objetivo legal neste momento de tanta repressão que nas ruas se vive. Minha visão, pela experiência, é outra no sentido de que estou sabendo o que pode acontecer se não existe mediação entre as partes. Sabe-se muito bem que há diferenças que separam a um morador de rua de alguém que mora em uma casa, mas que estão no mesmo momento ocupando um mesmo espaço. As diferenças não são sempre tao óbvias como denominá-las “diferenças culturais”, mas sim de perspectiva do mundo, da vida.

Saímos em grupo com os moradores de rua atrás do nosso almoço. Fomos para uma igreja perto dos arcos, quando chegamos ela estava fechada. Chegam atrás de nós a Luiza,  o Sharon e o Gil. Eles vêm para almoçar também. Como a igreja estava fechada, saimos andando para a central, em direção ao restaurante popular. Chegando perto, lembrei da igreja “Cristolândia” que tem almoço até 12h.

Entramos no momento do culto. Os meninos que não concordam com a igreja evangélica, ao igual que nós, vão entendendo que o tempo de ficar lá é para poder intervir e comer, que há outra missão mais importante, que é hackear esse espaço também.

A igreja evangélica insiste em fazer crer ao morador de rua que ele está errado, que morar na rua é ruim; que na rua mora o diabo e que se continuar ocupando o espaço urbano, vai piorar. Imediatamente, relaciona-se a rua com as drogas, como se os únicos dependentes de drogas no mundo fossem os moradores de rua. Inserem culpa, culpa religiosa para colaborar com o sistema e tirar as pessoas em situação de rua.

A religião, neste caso o evangelismo, cria estratégias para converter uma pessoa em situação de rua em um crente de sua religião e do que eles predicam. Uma vez que a pessoa se converte, é mais fácil para convencê-la a se internar em sua igreja, onde tem um sistema retrógrado de modificação de planos de vida. Um sistema cruel, discriminatório e com um forte conceito errôneo sobre a rua e seus habitantes.

No espaço, somos observados como diferentes. A Luiza é uma menina bonita, atrativa, de cabelo loiro, olhos claros e alta. O Sharon é moreno, tem um olhar profundo, com traços indígenas, atrativo. O Gil é um menino extrovertido, magro, com um corte diferente. Está conosco também uma menina que acampa na ocupação, ela é bem discreta, tem um sorriso lindo, é interessante. Todos estamos casualmente vestidos de preto. A análise da intervenção era um pouco óbvia, todo mundo achava que eramos punks.  Ainda que tenha certa simpatia e ache atrativo o seu pensamento, não sou punk.

A cara de Luiza ao ver o Gil dançando livremente as músicas religiosas, e acompanhando com palmas enquanto ninguém acompanha as músicas, era de fotografia. Ela estava surpresa, o Sharon acompanhava as nossas loucuras, aplaudindo e criando certo incômodo nas pessoas que organizam o ritual de convencimento. Nós chegávamos para romper com essa farsa.

Saimos de lá andando pela rua, mostrando um pouco a cidade para os meninos. Luisa é do interior de São Paulo e Sharon, do México.

Vamos para a Central e lá  nos encontramos com dois companheiros mais, um deles punk. Falamos sobre a ocupação e continuamos rumo ao Morro da Providência, primeira favela do Rio, que fica atrás da Central do Brasil. Vamos andando e encontramos com um lava-jatos, pedimos para um senhor que está lavando o chão se pode molhar-nos, o dia está quente e eu pelo menos estava desde o dia anterior sem tomar banho.

Depois do banho de lava jato, seguimos andando para a Providência. Na volta, passamos pelo Campo de Santana, lugar onde podemos sentir um fragmento de natureza. Aqui também é espaço de descanso dos moradores de rua. Chegam uns meninos que conheço das bocas de rango. Eles chegam perto, se somam, somos todos somados e todos somamos.                                              

Encontro com o Rodrigo, o mineiro que quer me conquistar. Convido ele para chegar junto ao acampamento, ele aceita e se soma ao bonde. No acampamento, deitamos juntos e dormimos. Acordamos 5h da manhã, para irmos à manifestação que está preparada na Vila Autódromo, perto do Rio Centro, lugar de conferência da Rio+20.

São 7h e os ônibus ainda estão  atrasados, estamos esperando do lado de fora da escola, na Rua do Lavradio. Há vários movimentos sociais ao nosso redor. Conheço uma chilena, com ela compartilhamos vários posicionamentos políticos nas falas.

São 9h e os ônibus estão saindo agora, subimos e vamos preparados para um protesto, que para nós é a reinvidicação dos direitos dos moradores de rua pela Ocupa dos Povos. Essa decisão foi tomada ontem na reunião sobre a manifestação. Eu senti que estava chegando a hora de falar sobre a população de rua, e que esse sentimento estava se reproduzindo. Não sei se por Paz Na Pista, mas acho que a visão do projeto ajudou muito.

Chegamos ao que prometia ser um protesto, uma manifestação. Mas que no final foi um desfile de movimentos sociais. Quando chegamos ao lugar, a polícia já estava formada para defender o espaço, os movimentos quiseram recuar e sair do lugar. A repressão nunca chegou, e a resistência tampouco. Novamente a performance da sociedade escondida por trás de movimentos sociais, dos quais estou començando a desacreditar.

Voltamos no ônibus debatendo sobre o fracasso da protesto. Voltamos com a iniciativa de uma ação direta para o que seria o dia mais importante do Rio+20.

A ameaça para o estado está começando a se trabalhar. As pessoas estão começando a se juntar. A população de rua está se alimentando de informação e está se organizando da melhor e mais perigosa forma: discretamente. Sentimento que vivo Na Pista.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Do lado dos loucos


Hoje, indo a procurar os salgados às 19h30, conheci um homem que se identificou como Pavão. Consegui distinguir, desde sua perpectiva, a realidade dos moradores de rua.

Pavão deve ter uns 53 anos. Mora na rua, como ele diz, por conseqüência de um fracasso. Ele não fala de que se trata esse fracasso. Encontro-me com ele na hora de ir a buscar os salgados deitado na calçada, machucado em várias partes do corpo. Pergunto o que foi que aconteceu e ele me responde que foi atropelado há 3 dias. Ou seja, na sexta-feira. Hoje é segunda-feira, dia 18 de Junho, e o rumo de Paz Na Pista mudou de espaço....

Acordo cedo por causa do sol que bateu nos meus olhos. Mas fiquei durante muito tempo deitado até tomar forças e ir andando para a zona sul...
Flamengo, Botafogo, Copacabana e Ipanema. Podemos diferenciar os dois últimos dos bairros anteriores. Primeiro, pelas diferenças na praias. Segundo, pela diferença de amabilidade das pessoas, terceiro pelo número de turistas e quarto pela possibilidade de encontrar um morador de rua. Parece que, quanto mais sul você for, as possibilidades de encontrar um morador de rua se fazem menores.

Polícia, muita polícia, junto a Guarda Municipal e seguranças particulares. Todos cuidando dos bens dos moradores da zona “chique” do Rio. Nada mais importante acontecendo, nada que possa somar para Paz Na Pista, que persiste em contar histórias de pessoas que passam pela experiência de morar na rua.
Aqui, consigo ver catadores de latinhas que identifico como quem substitue a comunidade de moradores da Cinelândia, com a diferença de que sua principal atividade é de catador, depois de mangueio (pedinte) e, logo depois, correr atrás da comida, já que aqui quase não tem boca de rango.

Isto é, na zona de maior dinheiro e conforto, vivem os que menos colaboram com a sociedade e interessam-se em entender as causas pelas quais existem outras formas de vida. O capitalismo aqui estragou as duas principais coisas que o humano tem para se defender, a natureza e a mente.
Tudo está cheio de prédios e com pessoas que nem olham para os olhos dos outros.

Volto andando para o acampamento da Ocupa dos Povos. Sento para compartilhar um espaço com a galera. De repente, vejo um multidão de índios marchando, vários, muitos indígenas ocupando a cidade. Parecia um filme, parecia uma mentira, da qual eu queria participar, dessa mentira eu queria participar.
Entrei na mobilização dos índios. Os tambores, as vestimentas, as caras, os sorrisos, a criatividade, a terra, o amor, a esperança, os humanos, a força, a união, a natureza, os índios. Eram mais de 600, dançando, batendo palmas e literalmente invadindo as ruas da cidade maravilhosa, cidade que hoje eu chamo de “cidade-contraste”. Aqui, essa sensação é tão forte, mas tão forte, que para ser são, alguns tem que ignorar.

Fizemos um círculo no meio do centro, chegamos ao Largo do Machado, onde começaram a invadir o edifício do INBS. Eram índios armados de verdades e valores invadindo o edifício que representava o poder do capital na cidade, junto com outros edifícios do centro. Os índios subiam correndo, eu comecei a correr subindo uma pequena montanha de grama. Eu e um menino que estava no acampamento e me acompanhou para a manifestação, ficamos assombrados com a beleza desta expressão. Saímos de lá realizados. A partir disso, éramos mais fortes que tudo...

Como um pedaço de melancia no acampamento. Conheci ontem duas pessoas muito simpáticas, a Luiza e o Sharon. Ela é de São Paulo e ele do México. São namorados e viajaram juntos até aqui. Compartilho o pedaço de melancia com eles e vou andando para a casa da Debora, onde vou escrever o diário de hoje.
Depois de escrever o diário, vou andando na procura dos salgados. Na hora de chegar,  encontro com dois homens, um deles, com quem não tenho contato nenhum, está sentado e o outro está deitado, com uma franja branca que cobre uma ferida na sua cabeça. Ele tem os dois olhos inchados, um deles vermelho. Tenta se sentar mas parece que tudo está doendo. Comenta comigo que teve um acidente, que uma van o atropelou. Para falar a real, não acredito, parece mais por uma briga que pelo tipo de acidente que ele descreve.

Ele consegue se sentar e começa a me perguntar o que faço na rua. Conto logo sobre o projeto e ele fica com vontade de contar-me histórias. Me começa a descrever sua percepção das ruas desde sua experiência:

“Conheci uma menina de 16 anos, ela morava na favela com sua mãe. Ela gostava de sair nos bailes e já estava querendo um marido. Na favela, isso é fácil de achar para uma garota de sua idade. Mas ela queria um homem mais velho que ela. Sua mãe  conhece um homem e se casa. A menina começa a achar interessante esse machão que agora vive com elas. As duas brigam, a mãe da menina a expulsa de casa. A menina vai morar na rua. Aqui, conhece uma galera de meninas e meninos que saem a roubar, mas para adquirir mais coragem, usam drogas.

Conheci ela pedindo um trago do meu beck, ela sentou ao meu lado, pegou o beck de minha mão e começou a fumar. Parecia uma mulher cheia de coragem e com a disciplina que na rua se tem. ‘O que está na rua pertence a todos’. A menina começa a me chamar cada vez que tem sua maconha, ela me pergunta sobre a minha vida. Eu respondo. A menina demonstra interesse por mim e eu convido ela para minha casa. Ela começa a morar comigo. Ficamos durante 3 anos, ela girava muito pó e eu não gostava. Quase tivemos um filho, mas ela perdeu o neném. Fiquei triste, ela depois foi embora...”

Vamos andando com o Pavão parao o Estácio, ele me conta como que é o espaço lá e o que fazem os moradores de rua da zona, que na sua maioria são catadores também.

A praça do metrô do Estácio é tranqüila e serena. Crianças brincam, jovens fumam maconha, idosos fazem esporte. Uma praça tranqüila. Com Pavão, os papos variam em torno da sociedade e a sua opinião e a minha com respeito as pessoas, ao capitalismo, à televisão, à religião e às drogas. Um papo sério, entretenido e onde concordo muito com ele.

A estação de metrô fecha, deitamos na porta da estação.

Pavão é um homem coerente, fala e concorda com o que ele vive. Parece entender o erro, e brincar com ele. O erro que todos temos, os preconceitos. Erros que se observam deste lado da experiência, erros que se vêm estando Na Pista.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Hackers do Sistema

Sim, mais um dia no Rio de Janeiro, mais um dia de  Rio+20, mais um dia de Cúpula dos Povos. Mais um dia eu, com Paz Na Pista, participando no acampamento da nova versão do Ocupa Rio, a  “Ocupa dos Povos”. Mais um dia compartilhando com uma sociedade distraída...

Hoje é domingo, 17 de Junho, acordo deitado na grama da praça ocupada desde quinta-feira por uma movimentação de pessoas que formam parte do OcupaRio. Levanto às 06h45 na Cidade Maravilhosa.
Ao meu lado, o Chile, que acorda já pensando no café da manhã. Escovo meus dentes e saímos para a Praça dos Professores, onde vai rolar um café da manhã 7h, que é levado por uma igreja evangélica. Chegamos lá e aguentamos o culto inteiro. É evidente que ninguém, mas ninguém, está interessado na palavra do senhor... do senhor que lê a Bíblia como ferramenta de justificação para sua forma de viver.


Terminando o culto, fazemos fila e recebemos o pão e café com leite, que representa nosso primeiro café da manhã de hoje, a promessa do Chile é que vamos pegar mais café em outros lugares. Assim foi, saímos da praça dos professores depois de tomar dois cafés e vamos em direção ao café da Catedral. Chegando lá, vemos que estão dando dois cafés da manhã. A gente faz as duas filas e bebemos muito café com leite e pão com manteiga.  Chegamos a pegar mais para levar para os nossos companheiros que estão acampando na praça, entre eles, a galera de população de rua que acompanham. Arieli, Alexandre, Diego, Sol, vão chegando para somar força. A luta é dos povos, e o povo de rua não pode ficar de fora.

É de distraído, de falta de conhecimento e distração; as duas juntas, no mesmo momento...

 O morador de rua consegue estrategicamente poder hackear o sistema a favor dele. Um exemplo claro e que é muito complicado de entender; os moradores de rua muito mais como coletividade, muito menos como instituição. Acredito que a melhor metodologia para se defender do fracionamento da sociedade e do ataque de forma grupal, é justamente sentir-se como grupo de indivíduos na mesma situação. Alguns por decisão própria e outros, por falta de oportunidade.

Enquanto isso, a sociedade adota dois conceitos para o morador de rua. Um que os defende, mas acredita que eles não devem estar nas ruas, portanto, bota-os em um lugar de subestimação. Entendo a vulnerabilidade que existe dentro do sistema de vida que leva um morador de rua, sem querer generalizar. Porque é esse tipo de erro que cometemos, a generalização. Nao são todos os moradores de rua iguais, pelo contrário, as razões pela qual moram nas ruas e os jeitos de viverem nela, são muito diversos e amplos.

Um outro conceito da sociedade é a partir do erro: o morador de rua é o erro dos seres humanos. Dentro deste conceito, os moradores de rua deveriam participar ativamente do sistema, aplicando as mesmas pautas para um reconhecimento.


Porém, o morador de rua não classifica estes conceitos e se fode no sistema cruel que estamos vivendo. Entendo a moradia de rua como um hackeamento do sistema. Ele utiliza todos os recursos que o sistema brinda, sem participar ativamente deles. Não pagar todos ou a maioria dos impostos. Não ter empregos convencionais. Não comprar produtos originais, mas também não deixar de consumir-los a seu favor.


Neste momento, com a limpeza que a guarda municipal, junto ao choque de ordem e a polícia estão fazendo, eles recorreram a uma metodologia de defesa de forma natural. Não ocupar em multidão, sempre dormir nos espaços em grupos reduzidos. De outra forma, vai ser mais fácil para o recolhimento poder levá-los aos “abrigos”.

Depois de nosso segundo café da manhã, levamos para o acampamento café com leite e pão para a galera de lá. Com Chile, pegamos nossas coisas para ir tomar banho e nos dirigimos para a bica de Santa Teresa. Na bica, encontramos um personagem da rua que chama-se Bruno. O Bruno é álcoolatra e gosta de ler muito. Dá de presente um livro para o Chile. Bruno é morador de rua, de vez em quando cruzo com ele pela rua bebendo ou já deitado.

Descendo de Santa para a Lapa, passamos por uma outra igreja que está perto dos arcos. Nesta igreja, também dão café da manhã, mas claro, devemos ouvir antes, como em todas as igrejas, o culto.
O culto neste lugar parece um castigo, a maioria dos pastores só sabem culpabilizar o morador de rua pelo fato de não levar a mesma vida que eles levam. Eles sempre relacionam o sucesso com obtenção de objetos. Sempre recalcam que o principal é o trabalho.


Depois do café da manhã, vamos embora com o Chile para a ocupação. Eu fico um tempo deitado na grama, mas espero duas horas para ir a escrever o diario.


Hoje é o dia dos pais na Argentina, cumprimento meu pai pelo facebook enquanto passo o diário de ontem para postar hoje. No acampamento estão preparando uma manifestação, a ideia é ocupar a pista que passa pelo Aterro do flamengo e ficar ali.


São 17h30, a pista está fechada ,todos os domingos fecha até 18hs. Temos que sair agora para não perder a oportunidade de protestar e na hora de abrir ficar ainda lá. A galera está toda preparada, alguns ficam no acampamento para cuidar das coisas. Os outros vamos a reclamar por a morte de uma de nossas companheiras que foi atropelada nesse lugar, a Marília. Ela era de Porto Alegre, viajava em bicicleta com seu namorado. Não sei a idade que ela tinha, mas era uma mulher jovem. Sua identidade visual me identifica, é uma artista de rua sem dúvidas.


A pista já está ocupada, criaram um coração de latas e flores ao redor, criamos uma fogueira e levamos as latas recicladas para fazer nossa música de protesto. A galera está empolgada, dançamos cirandas e gritamos na voz do protesto. Estamos nos manifestando mais uma vez. Começo a ver aquela irritante piscação de luz vermelha, a polícia começa a chegar. Vejo oficiais vestidos de marrom, azul, verde e preto.  Vários tipos de policiais chegam para parar com a manifestação.


Eles se preparam com seus escudos de plástico, se formam para entrar em combate contra a gente. Sinto que a gente não, e isso se faz evidente na hora de mudar de decisão “vamos a sair da pista”. Um objetivo cai, mas a segunda proposta é ocupar o evento da “cúpula dos povos”. Entramos em conflito com companheiros que acham que é arriscado deixar o acampamento sozinho. Um senhor fala no meu ouvido “o seu lugar é lá” como se nós só pertenecêssemos àquele lugar. Esse pensamento de cuidar de um espaço determinado, sem sentir que o mundo todo nos pertenece, para mim é errado. Na Pista a sensação é outra. A rua é nossa, e tudo o que está nela pode ser utilizado, de formas boas ou más.


A maioria toma a decisão de ir andando para a cúpula dos povos, vamos andando, entramos com nossa música. Cantamos “se morar é um direito, ocupar é um dever”, “mais amor, menos motor”...
Entramos na cúpula, ocupamos o MAM (tranformado em mais um espaço do evento), e com várias pessoas ao redor nosso, um companheiro fala e explica que somos do Ocupa dos Povos. Ele relata o acontecido com a companheira e com a intervenção da polícia que vem ameaçando diariamente. Uma sensação que para os intervencionistas do acampamento é deste momento, mas que para quem mora nas ruas a ameaça da polícia é diária.
Há uma tentativa de falar na rádio do evento, que é abandonada pelo perigo que a rádio sofre em ser retirada do local. Eles (a Rádio Cúpula dos Povos) também estão sendo ameaçados pela polícia.

Salve Intervenção!


Com o companheiro Chapu, colega do coletivo Anarco Funk, fazemos uma intervenção artística que reivindica a liberdade. Essa performance chama a atenção de várias pessoas que estão como visitantes da exposição. Aproveitamos a oportunidade, companheiros se acercam e as pessoas falam da nossa movimentação. Paz Na Pista se faz presente.

Saimos um grupo menor pela cúpula a reclamar contra o choque de ordem e a falta de participação da população de rua na exposição. Um megafone, três latas e todos nossos gritos dirigidos para que os outros possam ouvir nossa indignação.

Saimos do lugar felizes. Conseguimos chamar a atenção da populaçao distraída, conseguimos levar, através do nosso protesto, as realidades da Pista.


 
Manifesto  coletivo e anônimo de População de Rua

A População de rua tem fome...tem fome de direitos:

Saúde, educação,trabalho,moradia,assistência social, cultura, lazer, alimentação saudável, liberdade, autonomia.

Em todo o mundo, as grandes cidades expõem pessoas vivendo nas ruas num quadro extremo de violação de direitos. A resposta a tal situação em muitas das vezes implica na retirada compulsória dos espaços públicos, na segregação e no desrespeito à liberdade. Outra resposta costuma ser o empenho pessoal ou institucional de oferecer uma ajuda: diante da fome, providenciar comida; do frio, um agasalho.

O que leva uma pessoa a viver na rua? Quem são os homens e mulheres que vivem nas ruas? O que estas pessoas precisam?

O Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, de grande beleza que em 2012 acolhe delegações de todo o mundo para a Conferência mundial de Desenvolvimento Sustentável- RIO+20, tem parte da sua população vivendo em situação de rua. E é em momentos como este, que as autoridades intensificam a velha prática de recolhimento de pessoas. A cidade precisa estar “em ordem”, bonita e acolhedora.

O planeta é de todos? A praça é de todos? Estamos reunidos para garantir um mundo melhor para todos? Queremos vida digna para todos? 
No Brasil, a população de que vive nas ruas não é contada no censo oficial. Uma última pesquisa sobre esta população foi realizada por iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Social em 2007/2008 abrangendo 71 grandes cidades. A pesquisa registrou 4585 pessoa em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro. Passados 4 anos, um olhar mais atento constata expressivo aumento deste número. Em face dos mega eventos: Rio +20, COPA DO MUNDO, OLÍMPIADAS, a prefeitura do Rio adota a estratégia habitual: o recolhimento compulsório. 
Para onde vão homens, mulheres, famílias “recolhidos” nas ruas da cidade do Rio de Janeiro? Há abrigos?Como são tratadas estas pessoas? 
Em se tratando de população adulta, são 7 abrigos próprios: Plínio Marcos em São Cristovão, Stella Maris na Ilha do Governador, Aldaíza Spozatti em Realengo, Maria Teresa Vieira em Jacarepaguá, Boa Esperança em Santa Cruz, Irmã Dulce no Rio Comprido,e o “Rio Acolhedor” em Paciência/Antares, além de 3 abrigos privados conveniados: Associação Solidários de Betânia (Jacarepaguá e Santíssimo), Sociedade de Emaus/ Banco da Providência (Cordovil) e Toca de Assis (Cascadura). Em todos os 10 abrigos a capacidade de atendimento não alcança 1000 pessoas. Se ultrapassamos o número de 4585 pessoas, o que acontece com as pessoas quando as autoridades procedem o recolhimento?
Algumas iniciativas apontam para outras possibilidades, já que “um outro mundo é possível”:
- Pequenos albergues distribuídos por vários bairros da cidade;
- Centros de convivência em toda a cidade;
-Estratégia dde saúde da família para quem vive na rua;
- Mais serviços de saúde para quem usa álcool e drogas;
- Projetos de geração de emprego e renda;
- Renda mínima;
- Casa para quem não tem;
- Estímulo ao protagonismo de quem vive na rua na implantação das políticas públicas e no seu controle social.
- O Movimento Nacional de Pessoas em situação de rua cresce no Brasil reclamando direitos
- Intersetorialidade das políticas públicas, conforme prevê o Decreto Presidencial 7053 de 2009, que instituiu a Política Nacional para pessoas em situação de rua
- O Centro nacional de defesa de Direitos Humanos da população que vive nas ruas. Email: centronddh@gmail.com, o Disque 100 da SDH, a Defensoria Pública, o Ministério Público acolhem denúncias e apuram casos de violação de direitos e ameaças à vida.

A POPULAÇÃO DE RUA TEM FOME. TEM FOME DE DIREITOS.

domingo, 17 de junho de 2012

Zona de Conforto


Faz-me drogar: a proibição.
Faz-me roubar: a apropriação.
Faz-me estuprar: o preconceito.
Faz-me violentar: a ignorância.

Acordo tarde para o café da manhã que dão na catedral católica do centro do Rio, aos sábados. O café é servido  8h, horário que acordo dentro de uma barraca do Ocupa Rio. Hoje é 16 de Junho e tem uma galera lá fora ainda acordada de ontem. Saio da “zona de conforto”, onde a proteção da lona me esconde. Sou invisível para quem passa por aqui afora. Agora me encontro dentro, dentro de uma barraca.Dentro-fora,fora-dentro.

É sábado e, como o Chile falou, vai ser difícil o rango de hoje. Fico deitado em companhia do Gil. Entram mais tarde dois colegas muito especiais, o Street e a Mika. Eles namoram desde o acampamento passado de Ocupa Rio, na Cinelândia. Eu convivi já há um tempo no mesmo apartamento que eles, temos intimidade. Eles me oferecem o que vai ser hoje meu café da manha, dois biscoitos e um pouco de guaraná para passar.
E porque começo falando de comida? Simplesmente porque a segunda indispensável atividade para o morador de rua, é a comida. A primeira atividade mais importante, eu acredito que seja ocupar o espaço público como espaço natural. O morador de rua corre atrás de sua comida todo dia, isso já se converte na maior proporção de tempo do dia.

O Chile me informa que vai ter salgados 14h no mesmo lugar onde pegamos sempre, na Rua Miguel Couto. É meio dia e minha fome começa a aumentar, penso só em comer. Insisto na sensação de que o espaço de acampamento não está com uma energia boa, algo me incomoda aqui. As pessoas aqui falam, discutem, dormem, pensam, olham para o sol por um tempo; riem, choram, sofrem, bebem cachaça...

Estou sem vontade de ir para a zona sul, estava planejado estar hoje lá. Mas um fluxo de energia impede que eu vá. Esse fluxo se aumenta quando pergunto para o Chile se ele sabe de lugares onde ficam geralmente moradores de rua naquela zona. Ele me fala que não tem quase ninguém, e que isso tem a ver com o fato de darem prioridade à “limpeza” naquele lugar. Ou seja, a zona sul tem muito menos população de rua que o resto da cidade e isso é relacionado à discriminação e ao ataque do choque de ordem naquela zona.

Vamos com o Chile a pegar os salgados, tento voltar rápido, já que tem um pequeno espaço de tempo no evento Cúpula dos Povos onde vai se falar sobre população de rua. Penso em apresentar o Paz Na Pista lá.
Pego os salgados, volto andando, já são 15h e entro no Aterro do Flamengo onde acontece o evento. Defino numa palavra “INCOERÊNCIA”.

Grandes tendas cheias de cadeiras plásticas brancas. Empresas e até indústrias com tendas comerciais, de marketing e divulgação de seus produtos. Índios vendendo seus artesanatos, vestidos com as suas vestimentas típicas. Muitos estrangeiros. O capitalismo verde em sua máxima potência. Minha forte sensação: “esse não é todo o povo, o nome não combina com o evento”. Fico um instante procurando a globa do debate. Chego lá mas me falam que aí não é, e que não estão sabendo da assembléia que estou querendo assistir  “Assembléia do povo de rua”.

 Saio do espaço que antes de ser ocupado pelo evento, era também ocupado por moradores de rua. Mas agora só uma parte do povo ocupa esse lugar. O MAM se converteu num espaço de convivência para uma fração de povo. A cidade parece mais simpática com os visitantes que com seus habitantes. A cidade está pesada, o Rio está contaminado.

Passo pela ocupação do movimento Ocupa Rio, me encontro com as irmãs gêmeas e troco uma idéia. Debo me comenta que “estão sentindo que o diário está ficando repetitivo”, penso ao respeito. Ela acha que saindo da “zona de conforto” a história vai mudar. Saio andando, refletindo ao respeito...

Zona de conforto.
Do conforto à experiência.
Do projeto à realidade.
Da realidade aos meus pensamentos.
Rua, casa. Zona de conforto?
Mas também o “show da realidade” pode mentir, e de fato mente.
Diário= Minhas idéias e conceitos através da experiência. Mas também escuto.
Devo escutar para planejar.
Fragmentos. Escrevo meu diário.
Analiso e respiro um ar que chega seco e sem conforto.
Procuro a “Zona de conforto” mas onde?
“Confortar” o mundo, descobrir a minha zona.
Dormir em papelão e depender de comida das ONG para comer.
Zona de conforto?
Intervenho em espaços de caráter público, com perigo de ser recolhido pelo próprio estado.
Zona de conforto?
Centro do Rio de Janeiro é o espaço de maior quantidade de moradores de rua.
Zona de conforto.

Estou precisando de um banho, no MAM está impossível, a polícia ocupou o espaço em parceria com aquela Cúpula. Não está permitido mostrar a realidade, ela deve ser escondida por alguns dias. Ando em direção a Santa Teresa, na Rua Francisco Muratori, onde existe uma bica de água, a qual é utilizada por moradores de rua que dormem sobre as pedras desse lugar.

Chego ao espaço da bica, cumprimento o grupo de homens que estão ali. Percebo que estão os 5 bêbados e que tentam realizar atividades com a bica, como lavar roupas, tomar banho, limpar o espaço, etc. Encho um balde com água, piso sobre o pedaço de cimento que simboliza uma calçada. Pela rua, passam os ônibus com os passageiros em direção ao bairro de Santa Teresa, olhando para a gente. Alguns até chegam a tampar seus rostos, para evitar ver. Tomo meu banho tranqüilo, espero um momento para me secar.
São 16h40 e vou em direção a Casa França Brasil, a usar sua máquina para passar meu diário de hoje. Chego a Casa França, tenho muito material para passar. Faço uma primeira edição e mando para Pati fazer a edição em português. Aproveito para me comunicar nas redes sociais e divulgar meu trabalho.

Vou andando em direção ao Castelo, onde me integro a um grupo de moradores de rua para esperar o rango passar. Já são 20h46 e já passou um rango. Tenho a esperança que passarão mais ONGs entregando comida e bebida. Chega um carro, mais de 50 pessoas correm a buscar a comida. Na fila, chega mais um carro no outro quarteirão. Divide-se quase na metade a quantidade de pessoas. Todos correm. Agora posso perceber que na realidade somos mais de 100 pessoas atrás da comida das ONGs. Pego minha quentinha com sopa, deixo com uma tia. Vou procurar a outra quentinha. Espero numa fila enorme, pego minha segunda quentinha e uma água. Sento, como, me despeço e vou embora.
Sento na Praça dos Professores, assisto a uma desapropriação de coisas que estão dentro de um carro. Vejo que o cara é muito rápido, ele ganha objetos para vender. O sorriso mostra o prazer de desapropriar outros dos objetos.

Bebo água, canto e começo a escrever este diário Na Pista...

sábado, 16 de junho de 2012

Dia-dificuldade.

Normal,
Normatividade,
Normatização,
Norma,
Não.


O emprego para quem mora na rua trata-se de possibilidades, mas do que nada as que se relacionam com o bem estar. O bem estar que sentem os moradores de rua do Rio de Janeiro acredito que tenha mais a ver com a liberdade. A maioria dura pouco tempo nos empregos, a rua pode ser vista como um vício, mas os empregos também. 


Os empregos que existem entre a população de rua são mais  independentes, eles variam entre: reciclagem, na sua maioria de latinhas e papelão; desapropriação de pertences ou roubo e venda dos mesmos; venda de drogas em quantidades menores; prostituição, não existe diferença quantitativa entre homens e mulheres; venda de bebidas, ou “camelôs”; artesanato; pedir dinheiro ou “mangueio”, não existe diferença nenhuma entre mulheres, homens, crianças e idosos. Senão também existe o “trampo” ou “freelance” em inglês como a maioria chama aqui, que significa trabalho momentâneo.


Hoje é sexta-feira, dia 15 de Junho. É de madrugada e me encontro acompanhando na intervenção que o movimento Ocupa Rio, do qual participei o ano passado, está fazendo. Eles tomaram a decisão de ocupar a Praça Marechal Deodoro( praça do cavalo). Ela fica ao lado da Praça Paris, perto do passeio do Aterro do Flamengo.


Já passou a noite de quinta-feira, vejo a cidade cheia de eventos e de visitantes do mundo inteiro. Minha pergunta é como se vê o Rio+20 desde a perspectiva de um morador de rua. A realidade é que para a maioria significa mais um evento. Rio de Janeiro é a cidade de eventos, o estado adora criar evento para aumentar o número de turistas e assim poder aumentar também os números na economia do estado e da economia privada. Porém, sabemos que ela é distribuída de forma injusta e que, além disso, castiga aqueles que não participam de nenhuma das duas, neste caso os moradores de rua. A cidade tem que ficar limpa, e a limpeza para os governantes significa não ter pessoas ocupando a rua, dormindo na rua, pensando na rua, transformando a rua e compartindo a rua sem a autorização deles. A cidade faz eventos e tampa a sua naturalidade, as diversas realidades.

Vou dormir de madrugada, na grama da praça. Estão comigo companheiros que conheço da ocupação do ano passado. A tia Patricia chega com o tio Marcos e o Mateus para passar a noite com a gente na sintonia de resistência. Resistência de ocupação da pista que para esta nova versão do movimento nasceu ontem, para mim já há 9 dias e para moradores de rua há décadas.


Acordo cedo, o choque passou por aqui e ameçou tirar as barracas da manifestação. A história é circular para mim. A polícia e suas redes são uma ameaça constante, eles aparecerem por aqui não me faz muita diferença. A tia Patricia prefere sair do grupo por causa do Mateus, ela acha que está em risco se eles são levados para o abrigo e separados.


Acordo o Gil e o Dii, Dii é um colega que conheci o ano passado na ocupação da Cinelândia e logo ficamos  amigos. Ele é uma figura também querida por meninas que moram na rua. Ele tem 21 anos, é cabeleleiro e mora numa ocupação no bairro de Glória. Dii é homossexual e sua estética é bem particular. Ele é uma pessoa muito especial.


Acordados os três, determinamos ir como um “bando de viados” para a igreja evangélica Cristolândia. Hoje tem café da manhã, banho, roupa, almoço e, claro, vamos tentar dar o nosso show no momento musical do culto.


Chegamos e a fila está enorme, temos que esperar. Não paro de observar a cara do Gil que está toda escrita de tinta pilô preta. Acho que hoje vamos dar muito o que falar aqui dentro.


A fila começa a andar e vejo o Dii com cara de quem nunca ia se imaginar aí dentro. São 9h45, subimos as escadas, damos nossos nomes, sentamos na frente das fileiras de cadeiras e começo a perceber os olhos do resto se instalando sobre a gente. Somos três viados dentro de uma igreja evangélica, um todo pintado e os outros dois que não param de fazer gestos que podem incomodar ao grupo heteronormativo. 


Olhamos para os homens querendo seduzir. Cantamos as músicas que o Gil segue muito bem as letras pela sua experiência nessa religião. Batemos palmas e dançamos. O resto dos participantes se mantém quietos, a maioria dormindo. Um homem que mora na rua começa a se incomodar com a atitude de Gil de cantar em voz alta as músicas. Ele começa a ameaçar mas não faz nada, sei que ele não vai querer fazer nada. 

Chega o café com leite e os dois pães com manteiga que dão de café da manhã. Comemos e chega o momento do culto. Eu e Dii não paramos de falar sobre os homens que moram no lugar e os que trabalham como voluntários ali. Seguimos com os olhos todos os que passam pela frente. Acaba o culto e ficamos um bom tempo esperando que sejamos chamados para o nosso banho. Chega a nossa vez e vamos para onde pretende ser o setor mais interessante para a nossa intervenção, como em outras oportunidades, chega o momento do banheiro.


Chegando lá, fazemos o procedimento como nas vezes anteriores. Subimos as escadas, pedimos nossa muda de roupa, entramos no quarto, sentamos na fila de cadeiras, falamos da nossa vida, perguntamos sobre a vida dos meninos, tomamos banho, trocamos de roupa e saímos. Ao descer, Gil e Dii saem a fumar, eu fico sozinho sentado esperando o almoço. Nesse momento, se aproxima o menino que cuida da porta do banheiro, ele é um negro lindo de uns 25 anos. Senta ao meu lado e começamos a conversar, ele me conta que está aí por causas de drogas. Ele estava no exército e saiu pela mesma causa. Ele começa a filosofar da vida, sobre seus sentimentos e me fala que a rua é perigosa e que lá mora o diabo. Eu, claro, contradigo a sua visão e justifico que são as pessoas que alimentam a rua. Que a rua é o Diabo mas também é Deus. Que a rua é tudo e todos. Chegam os meninos e a conversa começa a ficar como um debate, cada um com a sua opinião quer expor e contradizer a opinião do outro sem convencer, mas sempre se justificando. O espaço está rodeado de moradores de rua, eles escutam a conversa, ninguém entra, ninguém opina, todos calam. Na hora do culto, dormem ou escutam mas não parecem acreditar. Na hora de chegar o almoço comem como a gente, não falam nada e saem. 


Na saída do lugar, somos interrompidos por um senhor, ele se apresenta e começa perguntando se somos homossexuais. Gil responde que sim, eu respondo que não e Dii responde com um som que pode ser de afirmação com a boca. Ele começa a falar querendo nos convencer que dentro de nós temos o demônio por termos relação com pessoas do mesmo sexo. Fala que isso está errado e que ele pode ajudar-nos com a palavra de Deus que fala na Bíblia. Ele quer nos convencer, nos negamos e começamos a discutir com ele. Ele insiste de outras formas, nos convida a orar com ele. A discussão chega até a porta, eu estou com vontade de ir ao banheiro. A discussão continua, um se justificando contra a palavra do outro. Soa uma sirene, os meninos e voluntários que estavam na sala sobem para o quarto. A gente para com a discussão, desce as escadas e sai andando. No caminho, conversamos sobre a discussão, tenho dúvidas da próxima intervenção nesse lugar.
A gente concorda, a gente existe, a gente intervêm, a gente é gente como a gente.

Entramos no Campo de Santana, tento usar o banheiro que está fechado, mas o homem pede para eu mijar no beco atrás do banheiro. Continuamos andando para a ocupação. Chegamos na praça, chegam a Arieli e uma amiga dela que também mora na rua. Eu deito e durmo um pouco. Num momento, acordo com gritos, vejo o Gil deitado ao lado meu apanhando por um grupo de policiais. Minha confusão faz que eu não entenda muito bem o que está acontecendo. A polícia vem com cavalos e eles vêm encima de mim, me levanto e saio correndo. A multidão da ocupação se aproxima, tiram fotos, Gil começa a ficar nervoso, responde a polícia. O dia começa a se revelar, hoje não vai ser um bom dia.


Todo mundo começa a correr, André tenta falar com a polícia que corre atrás do Gil. Ele tenta fugir mas é cercado por companheiros que recomendam que fique no espaço perto das câmeras que estão filmando e fotografando. Na minha cabeça é tudo uma confusão, consigo dirigir-me para a polícia, sou interrompido com um grito direcionado para todos de parte de André, colega nosso. A negociação não é suficiente, eles querem levar o Gil. Vejo um uniformizado pedir reforços, o reforço não tarda em chegar. Numa nova tentativa de expressar minha posição como testemunha da violência, sou outra vez interrompido por André que se dirige à mim. Acerco-me ao Gil que me pede seu tênis, corro para o espaço onde estávamos deitados e pego suas coisas. É tudo um grande confusão. Fico assustado com o que possa acontecer com o Gil, os policias justificam a agressão falando que ele os insultou e que corresponde à “desacato à autoridade”. 


Gil é levado junto ao André para a 9a. DP. Depois de vários recorridos entre a casa de Pati e Debo, a quinta DP e o caminho para a outra delegacia, chegamos à instituição. Pati, Debo, Fran e eu aguardamos  lá fora por uns instantes. Entramos à delegacia e começamos a discutir sobre o que aconteceu. A conversa se torna pesada e saio para escrever o meu diário.

A polícia reprime, a polícia quase parece um insulto constante para a sociedade. Estou totalmente em desacordo com a institução policial desde seu nascimento sem diferenciar por melhor ou pior por agredir mais ou menos. Eles violentam sistematicamente, todos sabem disso, mas fica entre a gente se estamos ou não de acordo com esse tipo de sistema. O morador de rua é para a polícia uma ameaça constante, escuta falar ações violentas feitas por funcionários dessa instituição com justificativas ridículas. O principal sofrimento sentimental do morador de rua é a discriminação da sociedade, mas o sofrimento físico deles é a violência física e ameaça de extermínio que estão tendo de parte da polícia controlada pelo estado. Existem diferenças entre policiais e policiais sim, mas enquanto a instituição não mudar seu foco, sua forma de agir, seu sistema, etc; estarei em desacordo com ela e com todos os que trabalhem e apoiem ela. Tenho certeza que não existe uma sociedade justa , menos violenta e não existe um mundo melhor, enquanto exista a instituição policial.


Chego na casa das irmãs Pati e Debo, começo a escrever meu diário. Estando pela metade dele, vejo a Debo e o Fran, que começam a brincar com maquiagem. Me faz lembrar da infância. 


Debo recebe uma ligação de sua irmã gêmea, a Pati, que informa que acaba de morrer uma menina do acampamento do Ocupa dos Povos. Eu fico angustiado demais com a notícia. Está difícil passar o diário, quero terminar ele rápido. 


O dia definitivamente está me dizendo que não ia ser legal e os acontecimentos revelam tudo isso. Minhas energias abaixam, quero sair à procurar de uma comida e deitar para dormir e terminar com ele.
Termino de escrever o diário, não estou me sentindo nada bem. Desde ontem, quinta feira, minhas energias não estão iguais e percebo isso em muita gente. Coincide com o início do evento Rio+20, Cúpula dos Povos e a iniciativa do Ocupa rio, o Ocupa dos Povos. 


Vou andando para a Cinelândia, não vejo ninguém, vou para a praça dos professores, encontro um grupo de moradores de rua que estão sentados esperando passar o rango. Me falam que um rango já passou, mas que está por passar outros. Prefiro caminhar até o Castelo.

Luz, Rua e ação!
Ando pelas ruas do Rio de Janeiro. Transformam-me.
Levo nas minhas costas uma mochila. Pesa-me.
As luzes dos postes iluminam só uma parte do espaço. Deslumbra-me.
Os edifícios ocupam as alturas. Surpreende-me.
Os carros passam como máquinas descontroladas. Incomodam-me.
Quase não tem ninguém na rua. Deliram-me.


As pessoas que ficam andando por aqui nestas horas são moradores de rua desta zona. Acompanham-me.
Chego no Castelo e sento a esperar a chegada de uma ONG com comida. Me chamam lá atrás, “Paz!”, “gringo!”, é o Familia que está deitado com uma galera. Pergunto para eles se já passou o rango e me respondem que sim, mas que está por passar outros. Um deles me dá uma quentinha, agradeço e com pressa a abro. Como todo o arroz, o feijão, o macarrão com salsichas e a farofa. Chega um carro com outras quentinhas, neste caso é uma sopa. Como e converso com a galera. Passa um homem e entrega uma moeda para cada um. Me despeço e saio andando em destino ao acampamento do Ocupa Rio. Chegando lá, a energia se torna pesada, é claro, estou na frente de pessoas angustiadas, tristes e desesperadas. Uma menina morreu esta tarde depois de ser atropelada por um carro, cruzando a rua. As mortes inesperadas são mais dolorosas, são mais difíceis de acreditar.


Esta noite vou a dormir cansado, triste, sem muita vontade de nada. Quero simplesmente dormir e esperar para que o amanhã me de outras histórias Na Pista.