terça-feira, 19 de junho de 2012

Do lado dos loucos


Hoje, indo a procurar os salgados às 19h30, conheci um homem que se identificou como Pavão. Consegui distinguir, desde sua perpectiva, a realidade dos moradores de rua.

Pavão deve ter uns 53 anos. Mora na rua, como ele diz, por conseqüência de um fracasso. Ele não fala de que se trata esse fracasso. Encontro-me com ele na hora de ir a buscar os salgados deitado na calçada, machucado em várias partes do corpo. Pergunto o que foi que aconteceu e ele me responde que foi atropelado há 3 dias. Ou seja, na sexta-feira. Hoje é segunda-feira, dia 18 de Junho, e o rumo de Paz Na Pista mudou de espaço....

Acordo cedo por causa do sol que bateu nos meus olhos. Mas fiquei durante muito tempo deitado até tomar forças e ir andando para a zona sul...
Flamengo, Botafogo, Copacabana e Ipanema. Podemos diferenciar os dois últimos dos bairros anteriores. Primeiro, pelas diferenças na praias. Segundo, pela diferença de amabilidade das pessoas, terceiro pelo número de turistas e quarto pela possibilidade de encontrar um morador de rua. Parece que, quanto mais sul você for, as possibilidades de encontrar um morador de rua se fazem menores.

Polícia, muita polícia, junto a Guarda Municipal e seguranças particulares. Todos cuidando dos bens dos moradores da zona “chique” do Rio. Nada mais importante acontecendo, nada que possa somar para Paz Na Pista, que persiste em contar histórias de pessoas que passam pela experiência de morar na rua.
Aqui, consigo ver catadores de latinhas que identifico como quem substitue a comunidade de moradores da Cinelândia, com a diferença de que sua principal atividade é de catador, depois de mangueio (pedinte) e, logo depois, correr atrás da comida, já que aqui quase não tem boca de rango.

Isto é, na zona de maior dinheiro e conforto, vivem os que menos colaboram com a sociedade e interessam-se em entender as causas pelas quais existem outras formas de vida. O capitalismo aqui estragou as duas principais coisas que o humano tem para se defender, a natureza e a mente.
Tudo está cheio de prédios e com pessoas que nem olham para os olhos dos outros.

Volto andando para o acampamento da Ocupa dos Povos. Sento para compartilhar um espaço com a galera. De repente, vejo um multidão de índios marchando, vários, muitos indígenas ocupando a cidade. Parecia um filme, parecia uma mentira, da qual eu queria participar, dessa mentira eu queria participar.
Entrei na mobilização dos índios. Os tambores, as vestimentas, as caras, os sorrisos, a criatividade, a terra, o amor, a esperança, os humanos, a força, a união, a natureza, os índios. Eram mais de 600, dançando, batendo palmas e literalmente invadindo as ruas da cidade maravilhosa, cidade que hoje eu chamo de “cidade-contraste”. Aqui, essa sensação é tão forte, mas tão forte, que para ser são, alguns tem que ignorar.

Fizemos um círculo no meio do centro, chegamos ao Largo do Machado, onde começaram a invadir o edifício do INBS. Eram índios armados de verdades e valores invadindo o edifício que representava o poder do capital na cidade, junto com outros edifícios do centro. Os índios subiam correndo, eu comecei a correr subindo uma pequena montanha de grama. Eu e um menino que estava no acampamento e me acompanhou para a manifestação, ficamos assombrados com a beleza desta expressão. Saímos de lá realizados. A partir disso, éramos mais fortes que tudo...

Como um pedaço de melancia no acampamento. Conheci ontem duas pessoas muito simpáticas, a Luiza e o Sharon. Ela é de São Paulo e ele do México. São namorados e viajaram juntos até aqui. Compartilho o pedaço de melancia com eles e vou andando para a casa da Debora, onde vou escrever o diário de hoje.
Depois de escrever o diário, vou andando na procura dos salgados. Na hora de chegar,  encontro com dois homens, um deles, com quem não tenho contato nenhum, está sentado e o outro está deitado, com uma franja branca que cobre uma ferida na sua cabeça. Ele tem os dois olhos inchados, um deles vermelho. Tenta se sentar mas parece que tudo está doendo. Comenta comigo que teve um acidente, que uma van o atropelou. Para falar a real, não acredito, parece mais por uma briga que pelo tipo de acidente que ele descreve.

Ele consegue se sentar e começa a me perguntar o que faço na rua. Conto logo sobre o projeto e ele fica com vontade de contar-me histórias. Me começa a descrever sua percepção das ruas desde sua experiência:

“Conheci uma menina de 16 anos, ela morava na favela com sua mãe. Ela gostava de sair nos bailes e já estava querendo um marido. Na favela, isso é fácil de achar para uma garota de sua idade. Mas ela queria um homem mais velho que ela. Sua mãe  conhece um homem e se casa. A menina começa a achar interessante esse machão que agora vive com elas. As duas brigam, a mãe da menina a expulsa de casa. A menina vai morar na rua. Aqui, conhece uma galera de meninas e meninos que saem a roubar, mas para adquirir mais coragem, usam drogas.

Conheci ela pedindo um trago do meu beck, ela sentou ao meu lado, pegou o beck de minha mão e começou a fumar. Parecia uma mulher cheia de coragem e com a disciplina que na rua se tem. ‘O que está na rua pertence a todos’. A menina começa a me chamar cada vez que tem sua maconha, ela me pergunta sobre a minha vida. Eu respondo. A menina demonstra interesse por mim e eu convido ela para minha casa. Ela começa a morar comigo. Ficamos durante 3 anos, ela girava muito pó e eu não gostava. Quase tivemos um filho, mas ela perdeu o neném. Fiquei triste, ela depois foi embora...”

Vamos andando com o Pavão parao o Estácio, ele me conta como que é o espaço lá e o que fazem os moradores de rua da zona, que na sua maioria são catadores também.

A praça do metrô do Estácio é tranqüila e serena. Crianças brincam, jovens fumam maconha, idosos fazem esporte. Uma praça tranqüila. Com Pavão, os papos variam em torno da sociedade e a sua opinião e a minha com respeito as pessoas, ao capitalismo, à televisão, à religião e às drogas. Um papo sério, entretenido e onde concordo muito com ele.

A estação de metrô fecha, deitamos na porta da estação.

Pavão é um homem coerente, fala e concorda com o que ele vive. Parece entender o erro, e brincar com ele. O erro que todos temos, os preconceitos. Erros que se observam deste lado da experiência, erros que se vêm estando Na Pista.