sexta-feira, 22 de junho de 2012

Resistência


Estou te olhando, estou sentindo que, juntos, vamos a fazer algo. Não tenho certeza o quanto vamos a modificar o nosso mundo, mas sim sei quanto poderemos modificar-nos. Estamos juntos, um olhando com cumplicidade para o outro. Existe alguma coisa em nós que nos une, quiçá a rebeldia, quiçá sermos o oposto, quiçá a pista ou tudo isso junto. Juntos, estamos juntos!

Penso e sinto que devo continuar aqui. Estou faz 15 dias na Pista, já a metade dos 30 dias do projeto. Estamos faz 5 dias acampando com a Ocupa dos Povos. A população de rua da Cinelândia se une na luta, eu não quero ficar por fora. Acho que por aqui existe a possibilidade de pautar atenção ao debate sobre morar na rua, que vem se postergando em todos e quaisquer debates dos movimentos sociais. A população de rua do Rio não tem um movimento social que reinvidique os seus direitos. Algumas organizações se articulam, criam iniciativas, mas é a minoria que participa. Mesmo desde o momento de querer institucionalizar aqueles encontros onde se discute a população de rua.

É como querer, da mesma forma, inserir em algum lugar do sistema a um outro sistema que responde por si mesmo, mas também que sabe levar a sobrevivência da rua de um jeito prático e de ação direta, sem a necessidade de se articular com a mesma organização de um movimento social. Funcionando mais de um modo prático e simples, atuando nos momentos em que a necessidade aparece, acompanhando-se uns aos outros nos momentos de emergência e ataque invasivo do poder político.

Estou no dia 21 de Junho, estou escrevendo o diário onde tentarei descrever os dois últimos dias que vivi na rua (19 e 20 de julho), acompanhando de perto tudo o que acontece na ocupação do Ocupa dos Povos, mas também o que acontece nas ruas do Rio de Janeiro, no momento do evento Rio+20.

Hoje acordo na barraca de um companheiro. Vejo como a galera que conheço da rua vai se somando à manifestação, desde ouvintes, desde militantes, desde humanos. Acompanhar de perto, unir-se, esse parece ser um objetivo legal neste momento de tanta repressão que nas ruas se vive. Minha visão, pela experiência, é outra no sentido de que estou sabendo o que pode acontecer se não existe mediação entre as partes. Sabe-se muito bem que há diferenças que separam a um morador de rua de alguém que mora em uma casa, mas que estão no mesmo momento ocupando um mesmo espaço. As diferenças não são sempre tao óbvias como denominá-las “diferenças culturais”, mas sim de perspectiva do mundo, da vida.

Saímos em grupo com os moradores de rua atrás do nosso almoço. Fomos para uma igreja perto dos arcos, quando chegamos ela estava fechada. Chegam atrás de nós a Luiza,  o Sharon e o Gil. Eles vêm para almoçar também. Como a igreja estava fechada, saimos andando para a central, em direção ao restaurante popular. Chegando perto, lembrei da igreja “Cristolândia” que tem almoço até 12h.

Entramos no momento do culto. Os meninos que não concordam com a igreja evangélica, ao igual que nós, vão entendendo que o tempo de ficar lá é para poder intervir e comer, que há outra missão mais importante, que é hackear esse espaço também.

A igreja evangélica insiste em fazer crer ao morador de rua que ele está errado, que morar na rua é ruim; que na rua mora o diabo e que se continuar ocupando o espaço urbano, vai piorar. Imediatamente, relaciona-se a rua com as drogas, como se os únicos dependentes de drogas no mundo fossem os moradores de rua. Inserem culpa, culpa religiosa para colaborar com o sistema e tirar as pessoas em situação de rua.

A religião, neste caso o evangelismo, cria estratégias para converter uma pessoa em situação de rua em um crente de sua religião e do que eles predicam. Uma vez que a pessoa se converte, é mais fácil para convencê-la a se internar em sua igreja, onde tem um sistema retrógrado de modificação de planos de vida. Um sistema cruel, discriminatório e com um forte conceito errôneo sobre a rua e seus habitantes.

No espaço, somos observados como diferentes. A Luiza é uma menina bonita, atrativa, de cabelo loiro, olhos claros e alta. O Sharon é moreno, tem um olhar profundo, com traços indígenas, atrativo. O Gil é um menino extrovertido, magro, com um corte diferente. Está conosco também uma menina que acampa na ocupação, ela é bem discreta, tem um sorriso lindo, é interessante. Todos estamos casualmente vestidos de preto. A análise da intervenção era um pouco óbvia, todo mundo achava que eramos punks.  Ainda que tenha certa simpatia e ache atrativo o seu pensamento, não sou punk.

A cara de Luiza ao ver o Gil dançando livremente as músicas religiosas, e acompanhando com palmas enquanto ninguém acompanha as músicas, era de fotografia. Ela estava surpresa, o Sharon acompanhava as nossas loucuras, aplaudindo e criando certo incômodo nas pessoas que organizam o ritual de convencimento. Nós chegávamos para romper com essa farsa.

Saimos de lá andando pela rua, mostrando um pouco a cidade para os meninos. Luisa é do interior de São Paulo e Sharon, do México.

Vamos para a Central e lá  nos encontramos com dois companheiros mais, um deles punk. Falamos sobre a ocupação e continuamos rumo ao Morro da Providência, primeira favela do Rio, que fica atrás da Central do Brasil. Vamos andando e encontramos com um lava-jatos, pedimos para um senhor que está lavando o chão se pode molhar-nos, o dia está quente e eu pelo menos estava desde o dia anterior sem tomar banho.

Depois do banho de lava jato, seguimos andando para a Providência. Na volta, passamos pelo Campo de Santana, lugar onde podemos sentir um fragmento de natureza. Aqui também é espaço de descanso dos moradores de rua. Chegam uns meninos que conheço das bocas de rango. Eles chegam perto, se somam, somos todos somados e todos somamos.                                              

Encontro com o Rodrigo, o mineiro que quer me conquistar. Convido ele para chegar junto ao acampamento, ele aceita e se soma ao bonde. No acampamento, deitamos juntos e dormimos. Acordamos 5h da manhã, para irmos à manifestação que está preparada na Vila Autódromo, perto do Rio Centro, lugar de conferência da Rio+20.

São 7h e os ônibus ainda estão  atrasados, estamos esperando do lado de fora da escola, na Rua do Lavradio. Há vários movimentos sociais ao nosso redor. Conheço uma chilena, com ela compartilhamos vários posicionamentos políticos nas falas.

São 9h e os ônibus estão saindo agora, subimos e vamos preparados para um protesto, que para nós é a reinvidicação dos direitos dos moradores de rua pela Ocupa dos Povos. Essa decisão foi tomada ontem na reunião sobre a manifestação. Eu senti que estava chegando a hora de falar sobre a população de rua, e que esse sentimento estava se reproduzindo. Não sei se por Paz Na Pista, mas acho que a visão do projeto ajudou muito.

Chegamos ao que prometia ser um protesto, uma manifestação. Mas que no final foi um desfile de movimentos sociais. Quando chegamos ao lugar, a polícia já estava formada para defender o espaço, os movimentos quiseram recuar e sair do lugar. A repressão nunca chegou, e a resistência tampouco. Novamente a performance da sociedade escondida por trás de movimentos sociais, dos quais estou començando a desacreditar.

Voltamos no ônibus debatendo sobre o fracasso da protesto. Voltamos com a iniciativa de uma ação direta para o que seria o dia mais importante do Rio+20.

A ameaça para o estado está começando a se trabalhar. As pessoas estão começando a se juntar. A população de rua está se alimentando de informação e está se organizando da melhor e mais perigosa forma: discretamente. Sentimento que vivo Na Pista.