Transforma, tudo se tranforma.
Aqui está o nosso mundo, nosso espaço, povoado
por nós mesmos. Estamos aqui, hoje, isso significa muito para quem acredita nos
humanos como energia. O nosso corpo está ocupando permanentemente um espaço,
compartilhado com outros seres e objetos. A rua é um pedaço de espaço onde todo
o mundo pode povoar, e um espaço que pertence sobretudo a nossa natureza, que
depende da defesa dos humanos. Ninguém pode se apropriar da rua como único
dono, nem botar regras sobre ela como pertence. A rua é de todos, a rua precisa
de todos, somos parte da rua e a rua é parte nossa.
Acordo em um pedaço de rua, mais precisamente
em um pedaço de calçada. A calçada parece ser o espaço que nos deixam as
empresas de automóveis para andar naturalmente como animais, como somos. É o
dia 12 de junho, estou como em outras oportunidades, do lado de fora da igreja
evangélica. Ao meu lado, a família da tia Patricia com o tio Marcos e Mateus. A
luz do sol me acorda, quero sair desse lugar. Vou ocupar um espaço na calçada
da rua detrás, aquela mesma que se esconde da iluminada praça da Cinelândia.
Ando por uma rua, está tudo nublado. Um cheiro
forte me incomoda, uma multidão anda junta pela grama que rodeia esta rua.
Vamos andando para o mesmo destino e quase com a mesma sintonia. Andamos,
realmente não sei para onde. De repente, a imagem se quebra em mil pedaços por
uma bomba. Estou no mais profundo sono, mas o som vem de fora. Me mexo rápido,
assustado. Em um movimento que faço com o pé, bato em alguém que está deitado. O grito
da tia me devolve a realidade, “Vai cair!” . Me levanto do chão, quem recebeu meu
chute havia sido o Fran. A tia Patricia, o Fran, o Mateus e eu
saímos debaixo de uma enorme madeira que serve para que obreiros trabalhem na
restauração do edificio. Eles haviam caído de uma altura de três andares, encima
dessa grande madeira na qual estávamos. Ficamos apavorados, eles se levantam
rindo e continuam com a obra. A tia pega suas coisas e vai em direção à igreja,
onde continua a dormir. Eu e Fran vamos para uma praça a deitar.
Hoje e o dia 12 de junho. Estamos de costas para o monumento do Gandhi, na praça que leva seu nome, deitamos e dormimos mais um pouco. Até que chega Adrieli, uma colega que mora na pista ocasionalmente, sua mãe fica sempre na Cinelândia. Ela me acorda, está com o namorado de sua mãe. Senta ao meu lado, me fala que tem muita vontade de ir junto comigo um dia para a praia, acho a ideia incrível. Arma um beck e fumamos, são 11h e estou sem minhas coisas, elas ficaram na casa da Pati. Vou com o Fran até lá. Pego minha mochila e vamos almoçar, claro, no restaurante popular. O Fran fica no caminho, fala que está sem fome. Fazemos as duas filas correspondentes, comemos e saímos.
Faço meu tempo para escrever o diário do dia.
Cravo meus dedos no teclado do computador na casa da Debo (integrante do
projeto), lá escrevo minhas linhas. Tomo o tempo de ler comentários e mensagens
de leitores: “maneiro a experiência de vida na rua que voce se propôs, gostaria
de saber se já experimentou bairros suburbanos como Ramos, Bonsucesso ou Irajá”,
me manda o Rodrigo.
A ideia de rodear a cidade ainda esta de pé, mas é certo que por aqui tem muitas histórias ainda para contar. Tenho pensado em deixar fluir, converso isso com a Débora. Deixar fluir sem pressionar, sem criar situações para contar. Paz Na Pista é um projeto pensado para revelar, desde minha visão, uma realidade que está oculta, esse é o meu principal objetivo.
Corro para pegar os salgados, no caminho me
encontro com o Chile, sentado fora do Centro Cultural Caixa Cultural comendo
uma quentinha. Ele me oferece de sua comida, eu falou que estou indo para os
salgados, pergunto se quer me acompanhar. Ele aceita e convida o companheiro,
que está sentado ao seu lado. Andamos três quarterões e chegamos. No lugar, nos
encontramos com Gil e uma colega. Nós cinco conversamos sobre os lugares e as
diferenças culturais. Eu boto a questão que tenho contra as fronteiras. O papo
está interessante até que é interrompido pela correria para pegar os salgados.
Dou uma olhada e observo que tem muitas sacolas plásticas de cor branca,
embalagem que se usa aqui para entregar os salgados. Parece que hoje vai ter
pra todo mundo.
Pego minha sacola com quatro salgados e vou
andando com o Gil e sua colega. Me contam de seus planos, uma intervenção
urbana que diz respeito ao movimento Ocupa Rio. Eles estão pensando em sair esta
noite a reciclar, acho a ideia divertida, genial para mostrar algo diferente dentro
do evento que compromete a política de vários países do mundo. A Rio+20 está
chegando, a cidade está entrando em convulsão pelo evento. As políticas que estão sendo aplicadas
pelo estado nesses dias, demonstram uma responsabilidade que ele tem em
ocultar, fingir, botar uma máscara enorme na cidade maravilhosa.
Chile, Gil, sua amiga e eu chegamos a praça dos
professores atrás do café que será entregue por jovens religiosos de uma igreja
batista. Eles diferenciam o rango hoje, levando às 20h um chocolate com pão,
biscoito e guaraná. Eles convidam a que oremos para o seu Deus, o Deus que eles
propõe, honram as palavras que eles acreditam, divulgam, mas não me convencem.
Me encontro na praça com o menino de Minas Gerais, aquele que me seduz com os olhos. Ele me conta que brigou com sua companheira, me pergunta onde vou dormir, falo que ainda não tenho certeza mas que acho que vai ser no mesmo lugar de ontem, debaixo da igreja evangélica, em frente a Cinelândia. Ele marca comigo 22h na frente do restaurante Amarelinho.
Eu me atraso, tenho uma conversa com a Debo que me faz demorar. Na volta, ele já não está mais. Vou à procura de rango novo e de ver se encontro ele. Vou andando até o Castelo, na volta passo pela praça dos professores, onde o vejo, deitado no banco, durmindo. Tento acordá-lo, mas prefiro não incomodar e vou embora.
Hoje é dia dos namorados, e isso me faz pensar em muitas coisas. A tia me mostrou esta tarde umas roupas que comprou para seduzir o marido. Estava na ilusão de ir a um hotel comemorar com o tio Marcos.
Chego na porta da igreja evangélica, o Mateus deitado durmindo sobre o papelão onde mais tarde deitam a tia e o tio. Também está o Gil, que me convida a dar um rolê na Lapa. Saímos andando e falando coisas sobre o projeto.
Me desenho em uma ideia, penso realmente qual
vai ser a direção de Paz Na Pista e o que pode chegar a atingir. Vejo uma ideia
forte, um projeto interessante. Vejo interesse em alguns que circulam dentro
das mesmas opiniões a que o diário se propõe. As pessoas que eu conheço que
estão do lado da pista, as pessoas que lêem o diario, os colegas do projeto.
Somos participantes de uma obra de arte, somos personagens de algo que, além de
ter um conceito antropológico, mostra com crueza, questões da sociedade. Não é
todo mundo que gosta de saber o lado B das coisas, não é todo o mundo que quer
dedicar seu tempo a refletir sobre, muito menos a pensar novas alternativas de
convivência entre os humanos. Somos diferentes, e como esses seres que somos,
temos que aprender a ocupar o nosso espaço no mundo, determinado por nós mesmos,
compartilhado com o resto.
O diário se converte em uma parte minha, em uma
parte de vocês, em uma parte de todos. Me sinto mais perto daqueles que poetizam
que dos próprios poetas, isso me deixa mais tranquilo.
Há um poema que não está escrito. Um poema que
se vive desde a PISTA.