quinta-feira, 14 de junho de 2012

Intervenção e salvação!


Eu acredito, sem dúvidas, na rua. Acredito porque duvidei dela durante muito tempo, acredito porque me senti capaz de suportar ao máximo as angústias e as alegrias que nela se depositam. Acredito porque nela passamos todos os dias- no meu caso, o dia todo. Acredito porque está composta por todos, acredito porque é aberta e sem rumos, acredito porque é livre e para que ela nunca suma.

Acordo esta manhã já pensando no café que o Chile me falou ontem. Trata-se de uma igreja evangélica perto da Estação Central, onde oferecem café, banho, roupas e almoço. São 8h45,levamos uns 20min andando da Cinelândia até a Central.

Hoje é o dia 13 de Junho e faz uma semana que estou nessa intervenção. Estou deitado na rua detrás com Gil, que chegara bêbado da Lapa durante a noite. Acordo ele para ir a tomar o café. Nesse momento chega o “Família”. Família é um morador de rua de uns 50 e poucos anos, já tem muito tempo morando nessa zona, na pista.  O conheci no ano passado, no acampamento do Ocupa Rio. Ele tem um grande carinho por mim, como eu por ele. Ele é um senhor simpático,  tem o perfil do malandro carioca. Pergunto para ele sobre o café que dão na Central, ele fala que pode acompanhar-nos durante um trecho e que depois pode nos explicar melhor como chegar.

Vamos andando com ele pela Rua Uruguaiana, passamos pela feira e ele fica, fala que tem que pegar um dinheiro de um trabalho. Nos explica como chegar, mas não guardamos muito bem. Saimos andando em direção a Central. Chegamos na rua explicada por ele e começamos a perguntar para os comerciantes, mas ninguém tem uma informação certa. Já são 9h30, achamos que já passou o tempo do café. Vamos andando para a porta do restaurante popular mais conhecido como “Garotinho” entre os moradores de rua.  Lá,  pergunto para dois caras que estavam na porta onde era esse café, eles indicam e dão o nome do lugar: a “Cristolândia”. Vamos em direção ao lugar, chegamos na porta, subimos umas escadas e pedem nossos nomes. Tive que escrever o meu já que não conseguiam me entender.

Intervenção salve!

A Cristolândia estava cheia, seu público era todo composto por moradores de rua. Nos dão duas cadeiras plásticas para que sentemos. Começamos a conversar com as mulheres que estão ao nosso redor sentadas. Elas estão aguardando para tomar banho, perguntam de onde somos, parece que chamamos muito a atenção.  Cumprimento um menino que morava na rua e participou um tempo do acampamento na Cinelândia, no ano passado. Ele agora está trabalhando no lugar, não me dá muitos detalhes, só que trabalha e que mora aí.

Um pastor começa a falar por microfone a sua interpretação da Bíblia. Chego a ouvir pouco, me desconcentra a minha observação do espaço. 

Gil conversa com uma mulher que está sentada ao seu lado. De repente chega um homem, parece ser o marido dela . Pede para Gil não falar mais com a sua mulher e sentar-se mais longe. Gil responde que não tem porque mudar de lugar. As mulheres que nos rodeiam falam que o homem está errado, mas que, para evitar confusão, era melhor trocar de lugar. Uma menina troca de lugar com Gil. Ela fica na nossa frente. Observamos que somos os únicos dois homens desse lado do salão, parece que separam por sexo e sexualidade, estão vendo em nós uma maior feminilidade que masculinidade, ou simplesmente preferem nos separar dos homens. Quando descobrimos essa divisão, algo em nós começa a se ativar, a necessidade de se expressar, a necessidade de romper com aquele clima tenso que havia no lugar. Começamos falando da beleza dos homens, começamos observando os meninos que trabalhavam no lugar, cantamos músicas, até chegar o momento do funk. 

Foi aí, nesse preciso momento que chega uma mulher e fala diretamente com Gil que deveríamos respeitar a “casa do senhor”. Gil responde com fragmentos da bíblia, justifica que não é errado se expressar na “casa do senhor”. A mulher continua servindo o café, chega o nosso prato com dois pães e um copo com café com leite. Continuamos conversando com a mulherada e trocando idéias enquanto mastigamos o nosso primeiro alimento do dia.

Depois de alimentarmo-nos, começam três crentes a cantar musicas evangélicas com um violão, um pandeiro e um microfone. Isso nos entusiasma. Vamos mais para perto do palco improvisado.  No meio da sala, três cabeleleiros cortam o cabelo de algumas pessoas, todos homens. Encontro com o Chile e o cumprimento. Ele já havia tomado o seu café e estava indo embora.  

Sinto que o Gil começa a incorporar seu personagem e eu, o meu. Dançamos, cantamos e convidamos o público a se expressar. Estão batendo palmas, mas ainda sem muito entusiasmo. Em um momento, um dos cabeleleiros sai de seu trabalho, pega o microfone e canta uma música conhecida entre os crentes, o bis “Para nossa alegria” .

O show havia terminado, as pessoas continuam chamando por lista a todos os que tomarão banho. Já passou um tempo e ainda não chamam a gente, Gil vai perguntar quanto falta para nos chamarem e volta: “somos o número 60 e estão pelo número 30” fala Gil.

Um pastor senta ao meu lado, conversamos e debatemos sobre as opiniões de cada um com respeito à religião. Não gosto do jeito que eles tentam inculcar sua crença nos outros. 

Um voluntário interrompe a conversa e pede para que acomodemos as cadeiras, já que vai acontecer o segundo culto. Me pergunto se eles acham que, com fazer mais cultos e reuniões, convencerão mais pessoas. Vejo muitas dúvidas nos olhos de quem leva a “palavra de Jesus”. 

Os voluntários desta igreja levam todos uma camisa amarela com o nome Jesus e embaixo em subtítulo Trans (numa cor) Forma (em outra cor). Gostaria de entender quais significados  dão ao prefixo “trans”. Um menino, voluntário, me explica que é uma brincadeira da gramática.

No meio do segundo culto, somos chamados para tomar banho. Subimos umas escadas e entramos num grande quarto com muitas camas. Lá, moram alguns meninos que estão “internados” na igreja para recuperação das drogas e da rua. Me espanta o fato de pensar que morar na rua é considerado uma doença. Um dos meninos explica como funciona:  ficam durante um mês com saídas limitadas (só podem sair para tomar sol); devem assistir a todos os cultos;  recebem comida e roupas e também cuidam  do serviço que presta a igreja para os moradores de rua. Se tiverem um bom comportamento, são levados para outro lugar, descrito por eles como o lugar de seus sonhos. “Uma casa grande com piscina” diz o garoto.
Os jovens devem ter entre 18 e 25 anos. Sento e observo, um deles me faz perguntas como: de onde sou, se moro na rua, porque estou aí, se estudei, se trabalho, etc. Respondo, começam a questionar a moradia na rua e aqueles que não moram nem moraram nela. Um dos garotos parece interessado na conversa, já são 7 meninos que se formam ao meu redor, escutando minha opinião com respeito a religião, liberdade e rua. Parecem estar se perguntando muitas cosas. A tarefa foi feita.

Comento com o Gil, ao pé do ouvido:  “agora entende para quem é a verdadeira intervenção? ”. Falei anteriormente de todas as partes que formam o projeto Paz Na Pista, acho que para cada uma das partes existe uma intervenção diferente.

Chegou minha vez de tomar banho, tento fechar a porta, mas o menino que toma conta me pede para não fechar, por segurança. Me pergunta se tenho vergonha de tomar banho, mas antes dele terminar a pergunta já estou nu e ligando o chuveiro. Estou tomando banho e cantando, sinto que alguém está me observando e não é o menino que toma conta da porta, já que sua voz parece que vem de fora do banheiro. Olho pela porta aberta e vejo outro menino, mijando no banheiro de frente, ele olha para mim e faz um piscar de olho. Acho engraçado. 

No mesmo momento, penso no papo sobre a liberdade, que acabamos de ter lá fora. Eles devem estar pelo menos um mês sem ter relações sexuais, ou tendo com parceiros do mesmo quarto. Me provoca intriga. O Gil começa a escovar seus dentes enquanto eu tomo banho, nos olhamos e rimos. A cena é cinematográfica. Me seco, troco de roupa. Ganho uma camisa do brechó que eles entregam para quem vai  tomar banho. Escovo meus dentes e descemos do quarto. Voltamos para a sala e nos oferecem o almoço. Chegam dois pratos plásticos com feijão, arroz e macarrão. Comemos rápido e saímos do lugar cumprimentando todo mundo.

Andando pela Rua Senador Pompeu, onde fica a igreja, saímos falando sobre nossa esperança. A intervenção tem a ver com Paz Na Pista e faz parte de nossa vida. Somos dois atores que fazemos do compromisso da realidade uma intervenção. Deixamos muito para pensar hoje naquele lugar.
Já são mais de 13h, vamos andando pelo Campo de Santana rumo a casa da Débora para compartilhar a experiência e escrever o diário do dia.

Rua, casa. Casa, rua. Me despertam várias questões. A nossa participação na rua, essa que pertence a todos e que está sendo apropriada pelo estado como único dono. A rua que precisa de nós para ter existência. Um pastor evangélico vê a rua como demônio, vê nela o pior. Eu vejo todo o contrário, aprendi a amar a rua. É ela quem me ensina a superar os conflitos que o sistema tenta me impor.
 As nossas energias na rua criam uma vida própria, uma vida que eu gosto, que me faz sentir parte de um mundo complexo. Experimentá-lo é a melhor tarefa que tenho para resolver. 

Na rua me sinto forte, me sinto acompanhado, sinto que pertenço, que ali podemos ser mais livres.
A casa como espaço individual de um grupo ou de um indivíduo. A casa limpa, organizada de um jeito, a casa onde guardo e escondo as coisas que não quero compartilhar com o mundo. A casa me permite entrar num espaço próprio ( de propriedade) e criar um mundo onde só eu resolvo me envolver e eu resolvo me entender, para mim, mim, mim. Casa = Eu. Na rua não, na rua somos. Eu posso determinar um espaço próprio mas esse espaço vai ser intervido por outros, o tempo todo.

Já fomos desapropriados da rua, a rua já tem seu dono ...o estado.

A rua é insegura, a rua é suja, e é ruim porque já não é nossa. Fomos acostumados a não nos apropriar de nosso mundo, porque sempre os poderosos se apropriam dele. Se não chega do capital das empresas, então chega do capital do estado. A rua já não é mais natural, a rua já não é de todo o mundo. Essa falta de sentido de pertencimento com a rua faz destruí-la, contaminá-la, faz deixar nas mãos de seu “dono” todo o poder sobre ela. Não apoiamos de quem se apropria do que é nosso, castigamos a eles com a discriminação, pedimos ao poder fazer a limpeza. Quando a limpeza não pode ser do ladrão para os donos, é dos donos (todos nós) para o ladrão (o estado). Antes de receber qualquer posição, qualquer nome, qualquer recurso que dê poder, temos que pensar que ante todas essas coisas, somos humanos. E como tais, participamos da sociedade. Algo que se torna difícil para o entendimento de governantes e empresários.

São 20h23 e estamos saindo atrás de um rango com meu colega intervencionista Gil. Passamos pela Praça da Cinelândia, depois pela Praça dos Professores, até chegar ao Castelo, onde nos encontramos com uma grupo de pessoas. Perguntamos se já passou alguma ONG com suas comidas e falam que só uma mas que estão esperando que passem mais. Nos encontramos com o Familia novamente. Ele está deitado com mais dois homens. Entrega em minhas mãos um salgado que distrai meu estômago até chegar a primeira comida. Na espera, me apresento para os senhores que estão com ele. Chega Diego e Sol, me cumprimentam. À medida que vão passando as pessoas, todos são conhecidos e vamos nos cumprimentando.


Chega o primeiro rango, é uma sopa. Fazendo fila, chega um outro carro com mais comida numa outra esquina. Pegamos aqui e pegamos lá. Sentados por fim para comer, passam 20 min e chega uma terceira van com mais uma sopa e pão. Comemos muito.

Seguimos conversando com a galera, o clima da noite está uma beleza. Voltamos andando devagar para a praça dos professores, encontramos com Adrieli. Ela está comendo uma sopa das últimas em passar. Batemos um papo e saímos andando para Cinelândia. Chegando à praça, nos encontramos com uma grande figura das ruas do Rio de Janeiro, nosso senhor Presidente. O Presidente é um senhor  de 70 e poucos anos, ele mora na rua faz mais de 5 anos e participa em muitos movimentos sociais. É reconhecido por sua participação em manifestações. Conheci o Sergio ou “Presidente”, também militando em Ocupa Rio.
Conversamos um momento com o Presidente e vamos para a frente do restaurante Amarelinho. Já estou com sono e Gil fala que também, vamos atrás de um papelão para deitar. Esta noite conbinamos de ir para a Central a conhecer a população de rua de lá e para acordar e estar perto da igreja “Cristolândia” onde iremos amanhã a tomar nosso café e nosso banho.

Passando pelo Teatro Municipal, vemos uma nova performance da aristocracia carioca. Hoje se entregam os prêmios MPB da música brasileira e o Teatro está cheio de artistas mostrando seu glamour com suas roupas na moda. Está cheio de seguranças que rodeiam o grande edifício. 


Com Gil, temos a idéia de poder divulgar de alguma forma Paz Na Pista. Pegamos um papelão, escrevemos com um spray vermelho, que o Gil leva na sua bolsa, o nome de nosso projeto. Saimos andando mostrando o cartaz para todos os convidados ao evento. Chamo esse trabalho de “não mídia” ou “ação direta”.

A noite desta quarta feira está finalizando, vamos andando pegando papelão e entre a procura de um espaço para dormir, indo e vindo, ficamos do lado de fora de uma loja junto a outros moradores que, com seus corpos; com sua criatividade; suas tristezas e felicidades; com suas riquezas e pobrezas; com sua energia, dormem Na Pista.