sábado, 9 de junho de 2012

Ninguém nasce numa flor


Lugar, espaço, território, propriedade, lar, meu lar, casa, a minha casa.
Como se comparte o espaço? Como se divide a quantidade de espaço que pertence a cada um em nosso mundo? Meu espaço sou eu quem escolho? Meço isso como? Quanto espaço ocupa os lugares para a vida dos seres humanos? É de quem realmente o espaço?
São seis e pouca da manhã do dia 08 de junho do ano 2012, dia marcado pelo cristianismo. Estou deitado do lado de fora de uma igreja evangélica, em frente à praça da Cinelândia. Na minha esquerda, a tia Patricia já acordada e o Mateus ainda dormindo. Abrem as janelas do comércio religioso e me pedem diplomaticamente para sair do seu ou do nosso espaço. A tia Patricia me fala que posso ir deitar e continuar dormindo na rua de trás ( Rua Álvaro Alvim). Pego meu papelão, meu saco de dormir vermelho e meu cobertor que ganhei de presente do Diego e da Sol. 
Chego na rua de trás e encontro com um casal, Alexandre e Danieli. São um casal de jovens entre 20 e 25 anos, simpáticos e parceiros, como se diz “fecham comigo”. Fico perto deles aí deitado; vejo um buraco que tem cara de ser a porta da casa de ratos. A Cinelândia tem seu próprio acampamento de ratos distribuídos por vários pontos da praça e ao redor. Entre eles a rua onde vou para continuar dormindo.
Boto um pedaço de papelão para tampar o buraco, armo a minha cama e deito tampado até a cabeça com meu cobertor. O dia está frio e nublado, dia bem invernal. 
Alexandre pergunta pela hora e respondo: seis e trinta e oito. Alexandre faz gesto de quem não está muito conformado com a hora e continua deitado abraçado da sua namorada.
Continuo dormindo mais um pouco com vondade de acordar meio dia, mas a chegada do Cigano me faz acordar logo; e começo a bater um papo com ele. Giovani ou “Cigano”, seu apelido, é um menino de 23 anos que mora na rua já há um tempo. Conheci ele no ano passado no acampamento da Cinelândia e ficamos muito parceiros ao ponto de falarem por aí que estamos casados. Nós brincamos com o nosso casamento tântrico; a gente tem máximo respeito com os sentimentos.
Cigano chega para acordar Alexandre, parece que tem que sair para trabalhar. Ele me conta que estão trabalhando numa construção no bairro da Lapa. Sai um momento e chega com um café que dividimos entre os quatro. Danieli pede moedas à um senhor que passa pela rua e com elas compra um miojo. Cigano e Alexandre saem e Danieli me convida a ficar ao lado dela compartilhando o papelão. São quase 10h e chega mais um casal; estes são mais velhos. É a tia Luciani e seu esposo Luciano, ambos de 30 e poucos anos. Deitam ao lado da gente. Começamos a conversar quando voltam Alexandre e Cigano para o nosso espaço. Parece que o dia de hoje eles não vão trabalhar.
São quase 10h e me preparo para ir tomar banho, hoje tenho vondade de invadir uma universidade que fica perto do Centro e me higienizar em um dos seus banheiros. Espaço que já conheço e onde já fui tomar banho e me higienizar em outras oportunidades.
Na hora de tomar banho, sinto que estou apenas cobrando a parte que me pertence da universidade. Todos pagamos as Universidades Estaduais, mas todas elas são utilizadas por grupos específicos.Pagamos a manutenção de um espaço enorme, com grandes salas e banheiros para aprender como participar mais ativamente das crueldades do sistema. Todos os moradores de rua deveriam ter direito, pelo menos, de tomar banho e se higienizar também nas universidades estaduais.
Chego ao lugar e está fechado, lembro da greve de 80 % das universidades brasileiras, lembro também que não vi isso em nenhum informativo jornalístico.
Vou andando até o MAM, onde existe a possibilidade de tomar banho de arte... desculpa, tomar banho de balde. Chegando lá, encontro com Diego e Sol acompanhados de mais duas pessoas. Cumprimento todo mundo e me sento ao lado dum latão onde improvisaram um método para fazer sopa. Me convidam, mas não estou com vontade de almoçar tão cedo. Fico aí, esperando a possibilidade de tomar banho sem que os policiais venham novamente me incomodar. Esse momento não chega nunca, nunca nem nesse momento de escrever sinto que a polícia para de me incomodar. Já deram 11h e os meninos estão com vontade de continuar comendo, então decidimos ir ao restaurante popular na Estação Central do Brasil.
O Restaurante Popular funciona de segunda a sexta, de 7hs a 15hs. É um projeto do estado e para almoçar no lugar tem um custo de R$1 por pessoa.  O lugar junta a maior quantidade de moradores de rua do centro da cidade, entre outras pessoas que almoçam aí também. A comida mesmo que se trate de modificar com algum tipo de carne, geralmente é arroz, feijão e fruta; as vezes pão e as vezes café.  Chegando lá, vejo cartazes bizarros como: ``Estamos sem água, o feijão vai ser diminuído`` ou ``Estamos sem água, banheiros interditados``. Não é novidade a falta de água no lugar.
Depois do almoço, estamos voltando para o MAM , mas no caminho Pati ( a parceira do projeto) me liga para perguntar o que achava de distribuir umas roupas que tinha guardadas em sua casa de uma antiga coleta. Acho a idéia ótima e vou para sua casa pegar as roupas. Nos encontramos então com outro parceiro do projeto, o Gil, e saimos para a Cinelândia com quatro sacolas de roupas. Chegando lá, deixamos em mãos deles a própria distribuição, todo mundo pegou alguma coisa. Consegui levar roupas para as tias Patricia e Luciani que estavam na rua de atrás (Rua Álvaro Alvim). Chegando lá com as roupas que separei para elas, me encontro com uma sessão de salão de beleza. As tias estavam tingindo o cabelo e se depilando o rosto. No meio da sessão, chega uma visita inesperada de um colega que conheci no Ocupa Rio, ele chega para conhecer de perto o projeto. Se simpatiza e pensa em trazer algumas coisas, além de conhecer de perto a vida daquelas pessoas. Só o interesse dele em ter chegado até lá e se dispor a conhecer a vida dessa população tem um valor muito grande. Minha sensação é que demos um pequeno passo à frente. O colega se retira e vai embora. 
Continuo com as tias e sua sessão de salão de beleza, onde também entro a participar. A tia Patricia, além de tirar minha barba com gillete, me corta o cabelo e faz um penteado, tudo com o intuito de ir esta noite para o baile funk junto com Danieli, Cigano e outros meninos que ficam na pista e sabem se divertir muito. O corte de cabelo justifica ainda mais minha necessidade de tomar um banho. A tia Patricia me pede para levar o Mateus também para tomar banho, então vamos os dois ao MAM com essa finalidade.
Chegamos lá, pegamos um balde e mesmo fazendo um pouco de frio a gente toma banho. Mateus pega uma flor da árvore e brinca com ela. Este clima me faz inevitavelmente pensar na minha casa, na Patagonia. Mateus com a flor descreve um lar para os insetos, fala que aí moram, que essa é sua casa. Sinto o despertencimento do espaço natural como casa, o estado, o sistema, a sociedade mesma que se conforma com esse modo de viver e assume que um espaço natural não pode ser nossa casa,a não ser que paguemos por esse espaço.
Os insetos têm sua casa natural sem perguntar à ninguém e todos eles parecem compartilhar o espaço, todos trabalham para a comunidade. A natureza parece determinar isso; os humanos parecem quebrar com essa “forma natural de ser”. Mas dentre os humanos, ninguém nasce numa flor.
Tento ser o mais rápido possível para não chamar muito a atenção da polícia, Mateus faz a mesma coisa. Terminando de tomar o nosso banho de exposição vamos a secar nossas bermudas molhadas num tipo de bueiro aonde sai ar. Ficamos secando as bermudas enquanto Mateus canta funk para mim e me pede preu cantar um dos meus funks pra ele. Mateus canta várias vezes no dia esse meu funk e se chega alguém novo ele pede preu cantar.
São 17:26hs, eu tenho que sair para a Casa França Brasil a aproveitar-me da sua internet. Deixo o Mateus com a mãe e saio andando com a sensação de chegar tarde para o terceiro post do diário. Na Casa França Brasil as duas máquinas estavam ocupadas, então marco com a Pati de ir para sua casa e ver a revisão lá.
Logo da revisão já são 19:16hs, horário para sair pegar os salgados que dão de graça na rua Miguel Couto. A gente fica esperando na porta da igreja com outros moradores de rua. Trocamos várias idéias, vamos conhecendo ainda superficialmente a vida das pessoas. Hoje o debate gira em torno das duas classes separadas. Pati, que intervem comigo nesse momento, fala da sua ideologia e sua postura com respeito à sociedade. Tenta explicar sua visão para um senhor, que coloca sua postura de entender como estar bem sucedido é ter dinheiro e bens materiais. 
Acho de maior valor poder ser observador de debates espontâneos tão ricos como esses. Penso que o sistema confunde, o sistema aplicado por nossa sociedade maltrata ao ponto de não só tirar de quem não tem os mesmos bens materiais, senão também fazer PENSAR e SENTIR que por não ter esses bens somos fracassados, somos mal sucedidos, somos dignos de pena, lástima, somos sobra. Tenho certeza que este cordão que a sociedade bota no pescoço para a população de rua está apertando demais mesmo. Acho torpe, muito torpe. A jogada de enfrentar o povo por quem tem e não tem é perigosa. O estado acha que ninguém esta de olho nele, a realidade é que durante muito tempo nossos olhos esquivaram o estado como culpado dos nossos próprios enfrentamentos. Mas, quando o cordão aperta demais, o povo começa a reagir. Não tenho medo, estou preparado. É só saber se aferrar bem, meu medo é de quem pode cair. Sinto os moradores de rua bem aferrados, sinto que se esse povo consegue se unir, algo muito grande pode acontecer. Sinto uma energia grande chegando perto, quero estar aí para poder ver...
Depois de pegar os salgados, voltamos para a Cinelândia. Pati se retira à sua cotidianidade. Fico na pista brincando com Mateus. Chega o tio (marido da tia Patricia), nesse momento não lembro do seu nome, mas o tio fica bem. Ele me conta que de jovem gostava muito de funk antigo, que sempre ia pros bailes, que dançava muito e que sabe muitas músicas. Me dá um presente lindo, para mim funkeiro, uns dos melhores. Começa a cantar funk dos antigos e me sinto como numa classe musical de história do funk carioca. Ele canta com um sentimento que parece estar presente naqueles momentos, descreve os bailes da época como algo maravilhoso, “o baile funk de favela era outra coisa” fala. Hoje quase não temos baile funk, e se temos, claro, não estamos falando dos mesmos bailes dessa época. O funk melody antigo tem um romanticismo penetrante. As letras falam de amor, de respeito, de comunidade, as letras falam de funk carioca.
Chove e por essa causa cancelamos o baile funk. Deito novamente fora da igreja evangélica frente à Cinelândia, são mais das 21h e meus olhos fecham de sono. Penso muitas coisas, penso que esta experiência está sendo muito importante para mim, sinto a vondade de que os cidadãos cariocas cheguem mais perto da população de rua. Me sinto protegido.
Sou acordado novamente por Pati que chega com André (amigo) e com mais um garoto. O último fica só um momento, numa hora tira uma flauta transversa e começa a tocar. O som acompanha o momento e cria na minha cabeça uma cena de filme, linda cena de filme. Mateus quer experimentar a tocar flauta. Ele não consegue mas tenta e tenta. O flautista guarda seu instrumento, dá um tchau pra galera e vai embora. Somos mais de 5 pessoas com as visitas (Pati e André) deitados juntos.  Chega mais uma mulher que fica dormindo no meio da praça, ela está com seu filho de 2 anos que também chama-se Mateus. 
Começamos a brincar com as crianças enquanto conversamos. A cena é de união, a gente se está conhecendo e compartilha um espaço, para nos entender, para conviver, para nos fortalecer.  A chuva não para, e pelo contrário, parece que aumenta.
André se retira, dá um tchau e sai. Ficamos em nos encontrar pela Lapa, idéia que fracassou. Ficamos compartilhando espaço com os tios e Mateus entre um e outro personagem que vem chegando, passa e sai. É sexta feira, e pelo meu pressentimento de sexta feira algo diferente vai chegar. Nada de Lapa, boate, festa, etc. Existe hoje outra sexta feira, que se curte desde a pista...