Lugar,
espaço, território, propriedade, lar, meu lar, casa, a minha casa.
Como se
comparte o espaço? Como se divide a quantidade de espaço que pertence a cada um
em nosso mundo? Meu espaço sou eu quem escolho? Meço isso como? Quanto espaço
ocupa os lugares para a vida dos seres humanos? É de quem realmente o espaço?
São seis e pouca da manhã do dia 08 de junho do ano 2012, dia marcado pelo cristianismo.
Estou deitado do lado de fora de uma igreja evangélica, em frente à praça da Cinelândia. Na
minha esquerda, a tia Patricia já acordada e o Mateus ainda dormindo. Abrem as
janelas do comércio religioso e me pedem diplomaticamente para sair do seu ou
do nosso espaço. A tia Patricia me fala que posso ir deitar e continuar dormindo
na rua de trás ( Rua Álvaro Alvim). Pego meu papelão, meu saco de dormir vermelho e
meu cobertor que ganhei de presente do Diego e da Sol.
Chego na
rua de trás e encontro com um casal, Alexandre e Danieli. São um casal de
jovens entre 20 e 25 anos, simpáticos e parceiros, como se diz “fecham comigo”.
Fico perto deles aí deitado; vejo um buraco que tem cara de ser a porta da casa
de ratos. A Cinelândia tem seu próprio acampamento de ratos distribuídos por vários
pontos da praça e ao redor. Entre eles a rua onde vou para continuar dormindo.
Boto um
pedaço de papelão para tampar o buraco, armo a minha cama e deito tampado até a
cabeça com meu cobertor. O dia está frio e nublado, dia bem invernal.
Alexandre
pergunta pela hora e respondo: seis e trinta e oito. Alexandre faz gesto de
quem não está muito conformado com a hora e continua deitado abraçado da sua
namorada.
Continuo
dormindo mais um pouco com vondade de acordar meio dia, mas a chegada do Cigano
me faz acordar logo; e começo a bater um papo com ele. Giovani ou “Cigano”, seu apelido, é um menino
de 23 anos que mora na rua já há um tempo. Conheci ele no ano passado no
acampamento da Cinelândia e ficamos muito parceiros ao ponto de falarem por aí
que estamos casados. Nós brincamos com o nosso casamento tântrico; a gente tem
máximo respeito com os sentimentos.
Cigano
chega para acordar Alexandre, parece que tem que sair para trabalhar. Ele me
conta que estão trabalhando numa construção no bairro da Lapa. Sai um momento e
chega com um café que dividimos entre os quatro. Danieli pede moedas à um
senhor que passa pela rua e com elas compra um miojo. Cigano e Alexandre saem e
Danieli me convida a ficar ao lado dela compartilhando o papelão. São quase 10h
e chega mais um casal; estes são mais velhos. É a tia Luciani e seu esposo
Luciano, ambos de 30 e poucos anos. Deitam ao lado da gente. Começamos a
conversar quando voltam Alexandre e Cigano para o nosso espaço. Parece que o dia
de hoje eles não vão trabalhar.
São quase
10h e me preparo para ir tomar banho, hoje tenho vondade de invadir uma
universidade que fica perto do Centro e me higienizar em um dos seus banheiros.
Espaço que já conheço e onde já fui tomar banho e me higienizar em outras
oportunidades.
Na hora de
tomar banho, sinto que estou apenas cobrando a parte que me pertence da universidade. Todos pagamos
as Universidades Estaduais, mas todas elas são utilizadas por grupos específicos.Pagamos
a manutenção de um espaço enorme, com grandes salas e banheiros para aprender
como participar mais ativamente das crueldades do sistema. Todos os moradores
de rua deveriam ter direito, pelo menos, de tomar banho e se higienizar também
nas universidades estaduais.
Chego ao
lugar e está fechado, lembro da greve de 80 % das universidades brasileiras,
lembro também que não vi isso em nenhum informativo jornalístico.
Vou andando
até o MAM, onde existe a possibilidade de tomar banho de arte... desculpa,
tomar banho de balde. Chegando lá, encontro com Diego e Sol acompanhados de mais
duas pessoas. Cumprimento todo mundo e me sento ao lado dum latão onde improvisaram
um método para fazer sopa. Me convidam, mas não estou com vontade de almoçar
tão cedo. Fico aí, esperando a possibilidade de tomar banho sem que os
policiais venham novamente me incomodar. Esse momento não chega nunca, nunca nem
nesse momento de escrever sinto que a polícia para de me incomodar. Já deram
11h e os meninos estão com vontade de continuar comendo, então decidimos ir ao restaurante
popular na Estação Central do Brasil.
O Restaurante
Popular funciona de segunda a sexta, de 7hs a 15hs. É um projeto do estado e
para almoçar no lugar tem um custo de R$1 por pessoa. O lugar junta a maior quantidade de moradores
de rua do centro da cidade, entre outras pessoas que almoçam aí também. A comida
mesmo que se trate de modificar com algum tipo de carne, geralmente é arroz,
feijão e fruta; as vezes pão e as vezes café.
Chegando lá, vejo cartazes bizarros como: ``Estamos sem água, o feijão
vai ser diminuído`` ou ``Estamos sem água, banheiros interditados``. Não é
novidade a falta de água no lugar.
Depois do
almoço, estamos voltando para o MAM , mas no caminho Pati ( a parceira do
projeto) me liga para perguntar o que achava de distribuir umas roupas que
tinha guardadas em sua casa de uma antiga coleta. Acho a idéia ótima e vou para
sua casa pegar as roupas. Nos encontramos então com outro parceiro do projeto,
o Gil, e saimos para a Cinelândia com quatro sacolas de roupas. Chegando lá,
deixamos em mãos deles a própria distribuição, todo mundo pegou alguma coisa. Consegui
levar roupas para as tias Patricia e Luciani que estavam na rua de atrás (Rua Álvaro
Alvim). Chegando lá com as roupas que separei para elas, me encontro com uma
sessão de salão de beleza. As tias estavam tingindo o cabelo e se depilando o
rosto. No meio da sessão, chega uma visita inesperada de um colega que conheci no
Ocupa Rio, ele chega para conhecer de perto o projeto. Se simpatiza e pensa em
trazer algumas coisas, além de conhecer de perto a vida daquelas pessoas. Só o
interesse dele em ter chegado até lá e se dispor a conhecer a vida dessa
população tem um valor muito grande. Minha sensação é que demos um pequeno
passo à frente. O colega se retira e vai embora.
Continuo com as tias e sua sessão de salão de beleza, onde também entro a participar. A tia Patricia, além de
tirar minha barba com gillete, me corta o cabelo e faz um penteado, tudo com o intuito de ir esta noite para o baile funk junto com Danieli, Cigano e outros
meninos que ficam na pista e sabem se divertir muito. O corte de
cabelo justifica ainda mais minha necessidade de tomar um banho. A tia Patricia
me pede para levar o Mateus também para tomar banho, então vamos os dois ao MAM com essa finalidade.
Chegamos
lá, pegamos um balde e mesmo fazendo um pouco de frio a gente toma banho. Mateus pega
uma flor da árvore e brinca com ela. Este clima me faz inevitavelmente pensar
na minha casa, na Patagonia. Mateus com a flor descreve um lar para os insetos,
fala que aí moram, que essa é sua casa. Sinto o despertencimento do espaço
natural como casa, o estado, o sistema, a sociedade mesma que se conforma com
esse modo de viver e assume que um espaço natural não pode ser nossa casa,a não
ser que paguemos por esse espaço.
Os insetos têm sua casa natural sem perguntar
à ninguém e todos eles parecem compartilhar o espaço, todos trabalham para a
comunidade. A natureza parece determinar isso; os humanos parecem quebrar com essa “forma
natural de ser”. Mas dentre os humanos, ninguém nasce numa flor.
Tento ser o mais rápido possível para não
chamar muito a atenção da polícia, Mateus faz a mesma coisa. Terminando de
tomar o nosso banho de exposição vamos a secar nossas bermudas molhadas num
tipo de bueiro aonde sai ar. Ficamos secando as bermudas enquanto Mateus canta
funk para mim e me pede preu cantar um dos meus funks pra ele. Mateus canta
várias vezes no dia esse meu funk e se chega alguém novo ele pede preu cantar.
São 17:26hs,
eu tenho que sair para a Casa França Brasil a aproveitar-me da sua internet.
Deixo o Mateus com a mãe e saio andando com a sensação de chegar tarde para o terceiro post do diário. Na Casa
França Brasil as duas máquinas estavam ocupadas, então marco com a Pati de ir
para sua casa e ver a revisão lá.
Logo da
revisão já são 19:16hs, horário para sair pegar os salgados que dão de graça na
rua Miguel Couto. A gente fica esperando na porta da igreja com outros
moradores de rua. Trocamos várias idéias, vamos conhecendo ainda superficialmente
a vida das pessoas. Hoje o debate gira em torno das duas classes separadas.
Pati, que intervem comigo nesse momento, fala da sua ideologia e sua postura
com respeito à sociedade. Tenta explicar sua visão para um senhor, que coloca
sua postura de entender como estar bem sucedido é ter dinheiro e bens
materiais.
Acho de
maior valor poder ser observador de debates espontâneos tão ricos como esses.
Penso que o sistema confunde, o sistema aplicado por nossa sociedade maltrata
ao ponto de não só tirar de quem não tem os mesmos bens materiais, senão também
fazer PENSAR e SENTIR que por não ter esses bens somos fracassados, somos mal
sucedidos, somos dignos de pena, lástima, somos sobra. Tenho certeza que
este cordão que a sociedade bota no pescoço para a população de rua está
apertando demais mesmo. Acho torpe, muito torpe. A jogada de enfrentar o povo
por quem tem e não tem é perigosa. O estado acha que ninguém esta de olho nele,
a realidade é que durante muito tempo nossos olhos esquivaram o estado como
culpado dos nossos próprios enfrentamentos. Mas, quando o cordão aperta demais,
o povo começa a reagir. Não tenho medo, estou preparado. É só saber se aferrar
bem, meu medo é de quem pode cair. Sinto os moradores de rua bem aferrados, sinto
que se esse povo consegue se unir, algo muito grande pode acontecer. Sinto uma
energia grande chegando perto, quero estar aí para poder ver...
Depois de
pegar os salgados, voltamos para a Cinelândia. Pati se retira à sua cotidianidade.
Fico na pista brincando com Mateus. Chega o tio (marido da tia Patricia), nesse
momento não lembro do seu nome, mas o tio fica bem. Ele me conta que de jovem
gostava muito de funk antigo, que sempre ia pros bailes, que dançava muito e
que sabe muitas músicas. Me dá um presente lindo, para mim funkeiro, uns dos
melhores. Começa a cantar funk dos antigos e me sinto como numa classe musical
de história do funk carioca. Ele canta com um sentimento que parece estar presente
naqueles momentos, descreve os bailes da época como algo maravilhoso, “o baile
funk de favela era outra coisa” fala. Hoje quase não temos baile funk, e se
temos, claro, não estamos falando dos mesmos bailes dessa época. O funk melody
antigo tem um romanticismo penetrante. As letras falam de amor, de respeito, de
comunidade, as letras falam de funk carioca.
Chove e por
essa causa cancelamos o baile funk. Deito novamente fora da igreja evangélica
frente à Cinelândia, são mais das 21h e meus olhos fecham de sono. Penso
muitas coisas, penso que esta experiência está sendo muito importante para mim,
sinto a vondade de que os cidadãos cariocas cheguem mais perto da população de
rua. Me sinto protegido.
Sou acordado
novamente por Pati que chega com André (amigo) e com mais um garoto. O último
fica só um momento, numa hora tira uma flauta transversa e começa a tocar. O som acompanha
o momento e cria na minha cabeça uma cena de filme, linda cena de filme. Mateus
quer experimentar a tocar flauta. Ele não consegue mas tenta e tenta. O
flautista guarda seu instrumento, dá um tchau pra galera e vai embora. Somos
mais de 5 pessoas com as visitas (Pati e André) deitados juntos. Chega mais uma mulher que fica dormindo no
meio da praça, ela está com seu filho de 2 anos que também chama-se Mateus.
Começamos a
brincar com as crianças enquanto conversamos. A cena é de união, a gente se
está conhecendo e compartilha um espaço, para nos entender, para conviver, para
nos fortalecer. A chuva não para, e pelo
contrário, parece que aumenta.
André se
retira, dá um tchau e sai. Ficamos em nos encontrar pela Lapa, idéia que
fracassou. Ficamos compartilhando espaço com os tios e Mateus entre um e
outro personagem que vem chegando, passa e sai. É sexta feira, e pelo meu pressentimento
de sexta feira algo diferente vai chegar. Nada de Lapa, boate, festa, etc.
Existe hoje outra sexta feira, que se curte desde a pista...