segunda-feira, 18 de junho de 2012

Hackers do Sistema

Sim, mais um dia no Rio de Janeiro, mais um dia de  Rio+20, mais um dia de Cúpula dos Povos. Mais um dia eu, com Paz Na Pista, participando no acampamento da nova versão do Ocupa Rio, a  “Ocupa dos Povos”. Mais um dia compartilhando com uma sociedade distraída...

Hoje é domingo, 17 de Junho, acordo deitado na grama da praça ocupada desde quinta-feira por uma movimentação de pessoas que formam parte do OcupaRio. Levanto às 06h45 na Cidade Maravilhosa.
Ao meu lado, o Chile, que acorda já pensando no café da manhã. Escovo meus dentes e saímos para a Praça dos Professores, onde vai rolar um café da manhã 7h, que é levado por uma igreja evangélica. Chegamos lá e aguentamos o culto inteiro. É evidente que ninguém, mas ninguém, está interessado na palavra do senhor... do senhor que lê a Bíblia como ferramenta de justificação para sua forma de viver.


Terminando o culto, fazemos fila e recebemos o pão e café com leite, que representa nosso primeiro café da manhã de hoje, a promessa do Chile é que vamos pegar mais café em outros lugares. Assim foi, saímos da praça dos professores depois de tomar dois cafés e vamos em direção ao café da Catedral. Chegando lá, vemos que estão dando dois cafés da manhã. A gente faz as duas filas e bebemos muito café com leite e pão com manteiga.  Chegamos a pegar mais para levar para os nossos companheiros que estão acampando na praça, entre eles, a galera de população de rua que acompanham. Arieli, Alexandre, Diego, Sol, vão chegando para somar força. A luta é dos povos, e o povo de rua não pode ficar de fora.

É de distraído, de falta de conhecimento e distração; as duas juntas, no mesmo momento...

 O morador de rua consegue estrategicamente poder hackear o sistema a favor dele. Um exemplo claro e que é muito complicado de entender; os moradores de rua muito mais como coletividade, muito menos como instituição. Acredito que a melhor metodologia para se defender do fracionamento da sociedade e do ataque de forma grupal, é justamente sentir-se como grupo de indivíduos na mesma situação. Alguns por decisão própria e outros, por falta de oportunidade.

Enquanto isso, a sociedade adota dois conceitos para o morador de rua. Um que os defende, mas acredita que eles não devem estar nas ruas, portanto, bota-os em um lugar de subestimação. Entendo a vulnerabilidade que existe dentro do sistema de vida que leva um morador de rua, sem querer generalizar. Porque é esse tipo de erro que cometemos, a generalização. Nao são todos os moradores de rua iguais, pelo contrário, as razões pela qual moram nas ruas e os jeitos de viverem nela, são muito diversos e amplos.

Um outro conceito da sociedade é a partir do erro: o morador de rua é o erro dos seres humanos. Dentro deste conceito, os moradores de rua deveriam participar ativamente do sistema, aplicando as mesmas pautas para um reconhecimento.


Porém, o morador de rua não classifica estes conceitos e se fode no sistema cruel que estamos vivendo. Entendo a moradia de rua como um hackeamento do sistema. Ele utiliza todos os recursos que o sistema brinda, sem participar ativamente deles. Não pagar todos ou a maioria dos impostos. Não ter empregos convencionais. Não comprar produtos originais, mas também não deixar de consumir-los a seu favor.


Neste momento, com a limpeza que a guarda municipal, junto ao choque de ordem e a polícia estão fazendo, eles recorreram a uma metodologia de defesa de forma natural. Não ocupar em multidão, sempre dormir nos espaços em grupos reduzidos. De outra forma, vai ser mais fácil para o recolhimento poder levá-los aos “abrigos”.

Depois de nosso segundo café da manhã, levamos para o acampamento café com leite e pão para a galera de lá. Com Chile, pegamos nossas coisas para ir tomar banho e nos dirigimos para a bica de Santa Teresa. Na bica, encontramos um personagem da rua que chama-se Bruno. O Bruno é álcoolatra e gosta de ler muito. Dá de presente um livro para o Chile. Bruno é morador de rua, de vez em quando cruzo com ele pela rua bebendo ou já deitado.

Descendo de Santa para a Lapa, passamos por uma outra igreja que está perto dos arcos. Nesta igreja, também dão café da manhã, mas claro, devemos ouvir antes, como em todas as igrejas, o culto.
O culto neste lugar parece um castigo, a maioria dos pastores só sabem culpabilizar o morador de rua pelo fato de não levar a mesma vida que eles levam. Eles sempre relacionam o sucesso com obtenção de objetos. Sempre recalcam que o principal é o trabalho.


Depois do café da manhã, vamos embora com o Chile para a ocupação. Eu fico um tempo deitado na grama, mas espero duas horas para ir a escrever o diario.


Hoje é o dia dos pais na Argentina, cumprimento meu pai pelo facebook enquanto passo o diário de ontem para postar hoje. No acampamento estão preparando uma manifestação, a ideia é ocupar a pista que passa pelo Aterro do flamengo e ficar ali.


São 17h30, a pista está fechada ,todos os domingos fecha até 18hs. Temos que sair agora para não perder a oportunidade de protestar e na hora de abrir ficar ainda lá. A galera está toda preparada, alguns ficam no acampamento para cuidar das coisas. Os outros vamos a reclamar por a morte de uma de nossas companheiras que foi atropelada nesse lugar, a Marília. Ela era de Porto Alegre, viajava em bicicleta com seu namorado. Não sei a idade que ela tinha, mas era uma mulher jovem. Sua identidade visual me identifica, é uma artista de rua sem dúvidas.


A pista já está ocupada, criaram um coração de latas e flores ao redor, criamos uma fogueira e levamos as latas recicladas para fazer nossa música de protesto. A galera está empolgada, dançamos cirandas e gritamos na voz do protesto. Estamos nos manifestando mais uma vez. Começo a ver aquela irritante piscação de luz vermelha, a polícia começa a chegar. Vejo oficiais vestidos de marrom, azul, verde e preto.  Vários tipos de policiais chegam para parar com a manifestação.


Eles se preparam com seus escudos de plástico, se formam para entrar em combate contra a gente. Sinto que a gente não, e isso se faz evidente na hora de mudar de decisão “vamos a sair da pista”. Um objetivo cai, mas a segunda proposta é ocupar o evento da “cúpula dos povos”. Entramos em conflito com companheiros que acham que é arriscado deixar o acampamento sozinho. Um senhor fala no meu ouvido “o seu lugar é lá” como se nós só pertenecêssemos àquele lugar. Esse pensamento de cuidar de um espaço determinado, sem sentir que o mundo todo nos pertenece, para mim é errado. Na Pista a sensação é outra. A rua é nossa, e tudo o que está nela pode ser utilizado, de formas boas ou más.


A maioria toma a decisão de ir andando para a cúpula dos povos, vamos andando, entramos com nossa música. Cantamos “se morar é um direito, ocupar é um dever”, “mais amor, menos motor”...
Entramos na cúpula, ocupamos o MAM (tranformado em mais um espaço do evento), e com várias pessoas ao redor nosso, um companheiro fala e explica que somos do Ocupa dos Povos. Ele relata o acontecido com a companheira e com a intervenção da polícia que vem ameaçando diariamente. Uma sensação que para os intervencionistas do acampamento é deste momento, mas que para quem mora nas ruas a ameaça da polícia é diária.
Há uma tentativa de falar na rádio do evento, que é abandonada pelo perigo que a rádio sofre em ser retirada do local. Eles (a Rádio Cúpula dos Povos) também estão sendo ameaçados pela polícia.

Salve Intervenção!


Com o companheiro Chapu, colega do coletivo Anarco Funk, fazemos uma intervenção artística que reivindica a liberdade. Essa performance chama a atenção de várias pessoas que estão como visitantes da exposição. Aproveitamos a oportunidade, companheiros se acercam e as pessoas falam da nossa movimentação. Paz Na Pista se faz presente.

Saimos um grupo menor pela cúpula a reclamar contra o choque de ordem e a falta de participação da população de rua na exposição. Um megafone, três latas e todos nossos gritos dirigidos para que os outros possam ouvir nossa indignação.

Saimos do lugar felizes. Conseguimos chamar a atenção da populaçao distraída, conseguimos levar, através do nosso protesto, as realidades da Pista.


 
Manifesto  coletivo e anônimo de População de Rua

A População de rua tem fome...tem fome de direitos:

Saúde, educação,trabalho,moradia,assistência social, cultura, lazer, alimentação saudável, liberdade, autonomia.

Em todo o mundo, as grandes cidades expõem pessoas vivendo nas ruas num quadro extremo de violação de direitos. A resposta a tal situação em muitas das vezes implica na retirada compulsória dos espaços públicos, na segregação e no desrespeito à liberdade. Outra resposta costuma ser o empenho pessoal ou institucional de oferecer uma ajuda: diante da fome, providenciar comida; do frio, um agasalho.

O que leva uma pessoa a viver na rua? Quem são os homens e mulheres que vivem nas ruas? O que estas pessoas precisam?

O Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, de grande beleza que em 2012 acolhe delegações de todo o mundo para a Conferência mundial de Desenvolvimento Sustentável- RIO+20, tem parte da sua população vivendo em situação de rua. E é em momentos como este, que as autoridades intensificam a velha prática de recolhimento de pessoas. A cidade precisa estar “em ordem”, bonita e acolhedora.

O planeta é de todos? A praça é de todos? Estamos reunidos para garantir um mundo melhor para todos? Queremos vida digna para todos? 
No Brasil, a população de que vive nas ruas não é contada no censo oficial. Uma última pesquisa sobre esta população foi realizada por iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Social em 2007/2008 abrangendo 71 grandes cidades. A pesquisa registrou 4585 pessoa em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro. Passados 4 anos, um olhar mais atento constata expressivo aumento deste número. Em face dos mega eventos: Rio +20, COPA DO MUNDO, OLÍMPIADAS, a prefeitura do Rio adota a estratégia habitual: o recolhimento compulsório. 
Para onde vão homens, mulheres, famílias “recolhidos” nas ruas da cidade do Rio de Janeiro? Há abrigos?Como são tratadas estas pessoas? 
Em se tratando de população adulta, são 7 abrigos próprios: Plínio Marcos em São Cristovão, Stella Maris na Ilha do Governador, Aldaíza Spozatti em Realengo, Maria Teresa Vieira em Jacarepaguá, Boa Esperança em Santa Cruz, Irmã Dulce no Rio Comprido,e o “Rio Acolhedor” em Paciência/Antares, além de 3 abrigos privados conveniados: Associação Solidários de Betânia (Jacarepaguá e Santíssimo), Sociedade de Emaus/ Banco da Providência (Cordovil) e Toca de Assis (Cascadura). Em todos os 10 abrigos a capacidade de atendimento não alcança 1000 pessoas. Se ultrapassamos o número de 4585 pessoas, o que acontece com as pessoas quando as autoridades procedem o recolhimento?
Algumas iniciativas apontam para outras possibilidades, já que “um outro mundo é possível”:
- Pequenos albergues distribuídos por vários bairros da cidade;
- Centros de convivência em toda a cidade;
-Estratégia dde saúde da família para quem vive na rua;
- Mais serviços de saúde para quem usa álcool e drogas;
- Projetos de geração de emprego e renda;
- Renda mínima;
- Casa para quem não tem;
- Estímulo ao protagonismo de quem vive na rua na implantação das políticas públicas e no seu controle social.
- O Movimento Nacional de Pessoas em situação de rua cresce no Brasil reclamando direitos
- Intersetorialidade das políticas públicas, conforme prevê o Decreto Presidencial 7053 de 2009, que instituiu a Política Nacional para pessoas em situação de rua
- O Centro nacional de defesa de Direitos Humanos da população que vive nas ruas. Email: centronddh@gmail.com, o Disque 100 da SDH, a Defensoria Pública, o Ministério Público acolhem denúncias e apuram casos de violação de direitos e ameaças à vida.

A POPULAÇÃO DE RUA TEM FOME. TEM FOME DE DIREITOS.