domingo, 10 de junho de 2012

De união sou nômade

...momentos, espera, chegada, momentos. Se fundem e confundem os verbos ser e estar, estar e ser.
Já passou de meia noite e ficamos com a Pati (colega do projeto), a tia Patricia, o tio Marcos, Mateus e eu deitados do lado de fora da igreja evangélica. Já é sabado dia 09 de Junho e a noite é a continuidade do que começou como sexta feira. Estamos ainda acordados, tentando ser livres do tempo. Estamos mantendo uma conversa agradável, falamos sobre o projeto. Do nosso compromisso e da nossa vontade de que as coisas mudem. O que deveria mudar? Minha resposta está neste momento em questões objetivas, deveria acabar o Choque de Ordem.
Faz frio e estamos nos cobrindo com os cobertores. Está presente com a gente também aquela mulher que fica dormindo no meio da praça, Regina. Ela deve ter uns 30 anos e está com seu filho de 2 anos que também se chama Mateus. A chuva não para. O menino quer brincar nas poças d’água, se escapa das mãos de sua mãe e consegue brincar pulando na chuva. A mãe fala pra ele, mas a rebeldia da criança é maior do que qualquer mandamento de pai ou mãe. Percebo a mesma coisa do Mateus, a liberdade da rua dá para as crianças um sentido anárquico com relação a seus progenitores e maiores.
Tentamos convidar a moça para deitar ao lado nosso, o casal Alexandre e a Danieli estão um pouco mais pra lá. Eles já parecem estar dormindo. 
Marcos (o tio) começa a cantar seus funks, o festejo de sexta feira está começando. Pati vai comprar uma garrafa de cachaça sabor a mel. Além de adoçar a nossa noite esquenta para um frio que promete ficar o sábado inteiro. Existe mais um detalhe que pode modificar a visão social com a comunidade, relaciona-se com as drogas. Esta noite presente ,mas de forma oculta, está a cocaína.
Regina, a mulher com seu filho, continua em pé na frente de nós cobrindo-se da chuva. Novamente, o tio Marco convida ela para deitar entre a gente. Ela insiste que não.
Voltamos ao nosso festejo de sexta feira, bebendo e conversando sobre posturas frente à população de rua. Nos conhecemos, cada um comenta da onde vem. A tia Patricia mora na rua, no mesmo lugar há mais de 20 anos. Ela comparte na sua fala que duas das suas filhas nasceram nas ruas e que ela criou seus filhos entre a sua casa, em Jacarepaguá e a praça da Cinelândia. 

Olho para o Mateus da tia Patricia que dormiu e que está bem coberto, já passaram mais de 2 horas e Regina continua com o Mateus menor no colo, ainda em pé. Parece que isso começa a incomodar e o tio Marcos convida mais uma vez a mulher a se juntar, ela não quer. Tia Patricia explica que se alguém passa e vê essa situação pode ligar para o conselho tutelar e que ela pode ser afetada por estar com seu filho também.


Regina comenta para Pati que estava tentando arrumar dinheiro para voltar para sua casa em Nova Iguaçu. A tia Patricia um pouco estressada com a situação, fala para a mulher que ela precisava ter se comunicado antes com a gente, e que deveria priorizar o bem estar do filho. A gente tenta arrumar dinheiro para ela, mas ela não quer. A tia Patricia, já sem paciência, pede para a mulher que, se não vai para sua casa, ou deite com a gente e abrigue a criança, ou se retire dali. Regina não aceita nenhuma das três coisas, prefere ficar em pé com a criança no colo e ao lado nosso. A tia levanta e começo a sentir que a situação vai ficando cada vez pior. A tia Patricia convida a mulher pra sair, pede que cruze para a praça e fique do outro lado. A mulher responde com certa grosseria que ela queria ficar aí nessa situação, que não precisava nada de ninguém. Tento explicar que nossa maior preocupação é com a criança, e que ela deve tomar uma atitude principalmente pelo filho. Ela ignora minha conversa respondendo do mesmo jeito. Pati tenta chegar mais perto e oferece acompanhar ela pra pegar o ônibus, ela pede em troca que a Pati acompanhe ela até Nova Iguaçu. Sinto que a noite está ficando pesada. 


A tia Patricia começa a levantar a voz e discutir com ela num tom assustador. Pede pra ela sair de perto da gente, a mulher cruza a rua e começa com palavras de ofensa contra a tia Patricia e a gritar pedindo socorro. Pati entra como intermediária, insistindo em solucionar seu problema. A mulher insiste que não quer ajuda e sai andando em direção à cabine da polícia da praça. Ela não pede auxílio, nem socorro, nada. Ela simplesmente sai andando. A chuva para e a noite começa a tomar uma forma de desgosto.
Numa hora chega mais um homem, ele também é morador de rua. Ele me dá dinheiro e pede preu ir a comprar cerveja. Voltando de lá, encontro um tumulto que reune um grupo de garotos que pareciam vir da Lapa e o nosso bonde. Pati, a tia Patricia, o tio Marcos e o homem que acabava de chegar todos numa conversa que percebo não ser agradável. Um dos garotos insinua que o homem queria brigar. Isso faz incomodar a todo o mundo e se dividir numa situação que pode ter terminado em briga. 
Voltando pra baixo da marquise da igreja, peço que me expliquem o que havia acontecido. Pati me explica que se acercou à eles pedindo um dinheiro e contando sobre o projeto. A reação dos meninos não foi das mais simpáticas, já que para os olhos deles, Pati não tinha nada a ver com moradores de rua e pelo contrário, ela não tinha porque pedir dinheiro já que parecia o que chamaram de “patricinha”. A situação era muito confusa, sentia que o jeito de agir das partes estava errado. Pati encontrou através da necessidade de pedir dinheiro a justificativa para falar do nosso projeto. Duas coisas que não tem muita relação entre si.  Além disso, os garotos interpretaram a intervenção do tio Marcos e do outro homem como algo violento, então aí começou a confusão. Eu, pedindo desculpa para os caras, fui chamando o bonde para voltar ao espaço que estávamos ocupando. Depois de me explicar a situação expressei minhas incomodidades em relação à intervenção da Pati e do resto que num gesto nobre de querer atrair e fazer pensar, transformou-se num momento de confusão e de mal entendimento. Tentamos nos explicar porque não é o jeito de agir nem o momento.
São mais das três e meia da manhã, a gente fala sobre o sucedido. O homem que estava entre a gente vai embora. Eu preciso descansar um pouco, deito ao lado do Mateus. Entre sonhos e o som da realidade, escuto a voz de um homem. Abro meus olhos e vejo um guarda municipal conversando com a galera. Escuto uma frase que fabricada parece de publicidade: “Não posso ficar em casa enquanto há pessoas dormindo nas ruas”.  Seria uma grande surpresa se essa frase saísse do guarda municipal, mas não, vem da boca da Pati. Reflito rapidamente sobre a frase, não concordo. Entendo que muitas pessoas moram nas ruas por necessidade, por falta de lar. Mas existe um grande número de moradores de rua que gostam da vida nas ruas. Eu não pretendo com Paz Na Pista tirar ninguém das ruas, simplesmente gostaria de frear a discriminação com a comunidade de população de rua. Acredito que as pessoas discriminam por falta de conhecimento. Eu fico de perto justamente pra conhecer e demonstrar que não existe perigo estando entre eles, que o perigo vem da mão do poder público.
A tia Patricia me apresenta para o guarda, ele me pergunta de onde eu sou. Respondo e ele automaticamente tenta aplicar seu espanhol na fala. Pergunto para o guarda porque ele é guarda municipal, a resposta acho estranha. Ele estuda mestrado em história, precisava trabalhar em alguma coisa pra ganhar seu dinheiro. Abriram concurso e ele decidiu entrar na Guarda Municipal.

Comento com ele meu desprezo com a polícia e todos seus ramos, ele tenta justificar a instituição onde trabalha, mas fica sem justificativa que me convença. Acho que ele tampouco está muito convencido. Parece uma pessoa simpática e bem humorada, mas sem nenhuma postura forte.
O guarda dá um tchau e vai embora. Volto para o meu sono e a galera fica na conversa constante de madrugada.
Já está amanhecendo e chega duas mulheres, uma delas já conheço do acampamento do Ocupa Rio, uma mulher problemática. Comento com a tia Patricia rapidamente dos problemas dela já que escutei a Pati começando com uma discussão. A tia Patricia rapidamente entra em enfrentamento com ela, chega perto e começa a ameaçar. Nesse momento, a outra mulher que também é moradora de rua, me pede pra acompanhar ela a buscar sua mala num lugar perto da onde ela deixou.

Indo a buscar a mala, ela me entrega uma lata de cerveja, espero ela fora de um quiosque de flores, e enquanto ela tira suas coisas, dois moradores de rua passam e me cumprimentam. Me pedem o gole da cerveja, eu dou. Na volta, a mulher me dá uma enorme mala preta com rodas preu levar até a Cinelândia, ela descobre que está faltando um pouco da sua bebida e começa a protestar comigo, me acusando que vai contar isso para a tia Patricia.

Chegando na praça da Cinelândia nos encontramos com uma cena terrível. A tia e a outra mulher haviam brigado, as duas estão sangrando e nervosas. O tio Marco tira a mulher da frente da tia levando ela mais longe. Eu e Pati ficamos com Mateus. As coisas entraram em caos.
Gritos, ameaças, insultos, golpes, tudo se reunia na praça, entre os painéis de uma mostra de fotografia que está há mais de um mês. Os seguranças da praça chegam perto da gente para entender o acontecido, um deles pergunta pra mim e pra Pati. A Pati comenta sobre o projeto e ele fica interessado, se oferece como segurança nos horários que não esteja trabalhando. Explico que não é necessário, mas ele insiste. Deixa seu contato e pega o contato da Pati.
A igreja evangélica abre suas portas, são sete horas da manhã. O pastor manda falar com os seguranças do local que temos que sair da frente da igreja. O dia está chuvoso e me pergunto onde iremos ficar.
A tia chora, eu abraço ela. Quando as coisas começam a se acalmar lembro que 8hs dão o café da manhã na catedral. Tudo já está calmo, a tia com Mateus e o tio ficam mais um tempo debaixo da igreja até eu voltar do café. 

Na igreja, o café é servido lá dentro. As pessoas têm de pegar uma senha que dá um senhor da organização. A senha é um pedaço de tecido plástico em forma de quadrado e pirâmide. Os últimos em chegar pegam a pirâmide.

Hoje a fila está cheia, tem mais de 100 pessoas, na sua maioria moradores de rua sem dúvidas. Logo depois de pegar minha senha vou para a fila. Sempre rola algum conflito entre as pessoas, parece que querem furar fila. Eu fico no meu lugar e vejo na enorme porta da casa de deus entrar uma tribo de estrangeiros. Eles tiram fotos e ficam rodeando a igreja. Um dos homens que está esperando pelo seu café fala que espera que eles não cheguem perto. É claro, eles olham de longe.

A catedral por dentro parece uma cápsula de muitas cores. Está rodeada de vidros coloridos e de esculturas de Jesus em sacrifício. Nos autofalantes, uma constante música de coro num outro idioma, dá uma sensação de transe. 
Já são 8hs e começam a distibuir o café. Pego meu copo plástico de café com leite e meus dois pães com manteiga. Tá chovendo e todo mundo fica embaixo à marquise. Eu vou andando até  debaixo duma contrução enorme de cimento sobre os banheiros. Já tem uma galera lá embaixo. Chego e cumprimento um grupo de jovens que me reconhecem da pista. Faz frio e eles propõem que fiquemos mais perto já que a maioria está sem abrigo. Uns quase colados nos outros continuam com a conversa, falam sobre a sua sexta feira e os roubos que cometeram. Em sua maioria, assaltos à estrangeiros na Lapa, onde sexta feira de noite se enche dessas pessoas.

As necessidades, as faltas, os desejos, os sonos, os objetos, o dinheiro, o material querendo substituir algo que não se substitui tão facilmente. Sensação de meninos entre a espada e a parede, o sistema colocando à prova. Aqui não existe os valores de quem mais tem, aqui o valor é ser o mais corajoso. Roubar faz parte de uma luta cotidiana de acreditar que aí existe a única saída.  Penso que enquanto eles roubam coisas com valores máximos de mil reais e correm um risco enorme de vida, outros roubam bilhões de reais,  não diretamente de uma pessoa, mas sim a um povo inteiro. Essas pessoas não correm risco de vida, essas pessoas são donos de empresas ou são representantes do estado onde se cria a lei para que o pobre cumpra enquanto eles anarquicamente criam suas próprias leis.

A chuva não quer parar, é sábado dia 9 e são as 9:30hs. Vou andando a procurar minha mochila na casa da Pati. Troco minha bermuda por uma calça comprida. Volto andando para a Cinelândia pensando na minha intervenção, me faz bem pensar muito o que estou fazendo, me faz bem Paz Na Pista.
Chego a Cinelândia e eles estão preparados para sair do lugar, mas pra onde vamos ir? Faço umas massagens na tia para baixar seu estresse. Proponho a gente ir pra frente da praça dos professores, perto da Cinelândia, onde as ONGs passam de noite para entregar seu rango. Vou primeiro eu dar uma olhada e vejo que já tem umas pessoas dormindo ali. Isso dá uma segurança de ficar com eles. Fazendo a nossa mudança, chegando já no lugar, um homem de um dos locais abertos sai e fala que ninguém pode ficar nesse lugar por causa de um assalto que aconteceu. Parece como um mecanismo de castigo.

Saimos andando rumo ao MAM , mas sabemos que ali fica a mulher com quem a tia teve problemas. Precisamos pensar em um outro espaço. As sugestões são  Castelo ou Praça XV. Vamos andando para esses lugares que ficam perto um do outro. Andando para lá me sinto novamente nômade, é isso, somos nômades. O nômade tem que se acostumar com novos espaços, se adaptar e entender a hora de partir.
Saí da Argentina como nômade, tinha que conhecer Latinoamérica. Cheguei no Brasil e me instalei aqui há 2 anos. Nômade é um jeito de viver, mas também é uma experiência onde a sensação gira em torno à construção de novos rumos.

Chegamos à Praça XV e nos encontramos com uma grande feira embaixo do viaduto. Vamos andando até o final da feira. No meio Mateus ganha um presente de um dos comerciantes, dois bonecos de plástico.
Chegamos no local aonde a comunidade fica, já tem algumas pessoas conhecidas. Armamos nosso acampamento sem barraca, mas ocupando um novo espaço. Deitamos, a tia nos dá uns biscoitos que compartilhamos e eu durmo. Marco com a Pati de sair uma hora da tarde para escrever o diário.
Acordo novamente com o som dos carros que não param de passar por debaixo do viaduto, já são 14hs e a tia quer sair desse lugar para voltar para a Cinelândia. Ela sente que lá é o seu lugar.

Voltamos novamente com a mudança, a chuva parou um pouco. A tia Patricia, o tio Marco, Mateus, a Pati e eu andando mais uma vez com carro, caixas de papelão e sacolas de plástico. Chegamos à Cinelândia e saimos com a Pati para trabalhar sobre a intervenção.

Minha cabeça está cheia de idéias, cheia de pensamentos voltados para o destino dessas pessoas. Vejo na Pati ansiedade de querer fazer algo, de querer modificar a realidade rapidamente. Mas entendo que é um árduo trabalho, que estamos para entender, para compartir e a partir desta intervenção procurar soluções. Mas para isso também entendo que se precisa da participação da sociedade, do povo querendo conviver em união. 
As utopias chegam com força acompanhadas de silêncio, somos débeis ante à subestimação da debilidade. Somos fortes ante o projeto de querer modificar. Os pensamentos, as idéias e a ação direta para a pista, se descobrem Na Pista.