sexta-feira, 8 de junho de 2012

Dormir sem dormir


Dormir e não dormir, não sei se antes havia sentido essa sensação. 
Na pista, dormir e não dormir é muito comum e fácil de entender. São várias as causas pelas quais alguém dorme e não dorme, e aí entendo porque não existe horário específico para cochilar. Estar ligado em tudo, a maior quantidade de tempo, em quem chega e em quem vai.
Hoje é o dia 7 de junho e são um pouco mais das seis da manhã. Acordo com as vozes de alguns homens. Me levanto e eles me cumprimentam. Boto a mochila nas minhas costas e volto para o lugar onde deixei o Diego e a Sol, na grama fente ao MAM.
Chego lá e deito novamente para continuar dormindo junto à eles. Diego me acorda, achei que o Choque de Ordem tinha chegado para seu recolhimento diário. Mas não, foi simplesmente para acordar.
Dobramos as cobertas que nos abrigaram a noite toda. Hoje é feriado, está nublado e percebo desde cedo que não há muitas coisas pra fazer. Pergunto pelo café da manhã que dariam de graça na praça do Flamengo. Diego me responde que ja passou o horário. Comemos pipocas e guardamos as cobertas num bueiro sem que ninguém perceba.
Sinto que andamos sem destino marcado, sem destino específico, deambulando. Essa sensação é diferente de quando você sai de casa e vai com destino a algum lugar. Deambular é uma sensação estranha, de sentir-se sem saída, sem rumo.
No caminho, chegando para a praça da Cinelândia, eles me contam sua atividade de sobrevivência que se relaciona com roubo, mas não assaltando. Não me convidam para realizar essa tarefa e marcamos para juntarmo-nos mais tarde.
Vou passando por debaixo de um edifício e reconheço no chão os lençóis do Fran, ele está deitado, coberto até a cabeça. Acordei-o chamando pelo nome, ele sai de sua cama improvisada e me cumprimenta. Deito ao lado dele e observo um grupo de moradores de rua um pouco mais pra lá, conversando. Uma mulher do grupo chega mais perto da gente e começa a falar coisas lógicas. Conta sobre o castigo diário da discriminação e a violência que eles sofrem, gerada pela própria cidade. Acho que não entendo pelo fato de sentir-me num contexto diferente. Estamos num mesmo espaço físico, mas ela parece haver tido uma discussão e chega falando como se nós estivéssemos dentro dela. A palavra para a situação seria: desconexa.
Durmo e acordo, acordo e volto a dormir. O dia está nublado, chuvoso e acompanhado do feriado que faz ninguém sair de casa... desconexo.. (para quem tem casa).
Esperamos passar um pouco a chuva. Estou com muita vontade de tomar um banho. Me sinto sujo.
Fran me acompanha até o MAM e peço um balde pra um morador de rua que está deitado embaixo duma ponte.


O banho que eu tomo é com short!.
Chega um policial depois de eu ter tomado banho e já vestido a roupa. Fala que não viu que eu estava tomando banho, mas que não posso fazer isso na frente da cabine. Quando fala da cabine se refere à cabine do policial, que substituiria uma delegacia no espaço do museu. Acho uma relação muito direta entre o museu e a delegacia, ainda analiso o porquê.
O policial parece não se preocupar realmente com a estética do museu e sim com o seu dever de policial: ninguém pode ver alguém fazendo algo errado porque vou ser eu quem paga.
Ele pergunta pela minha nacionalidade, respondo Argentino. Claro que na hora de responder estou esperando um outro questionamento. Ele faz o agrado de me falar: “Você vem da Argentina para ficar na rua? Volta para seu país!”.  Ainda assim achei que estava faltando mais algum tipo de agressão, então ele chega: “Quer dizer que se você está na rua aqui, você está clandestino” finalizou.
Olha o raciocínio do policial: Morador de rua estrangeiro = Clandestino. O museu pode ser muito organizado, mas a arte do ridículo nunca falta nesses lugares.
Claro, esse tipo de comentário não me faz mal algum. Frente a ignorância, tolerância...
Tomar banho num lugar aberto, público e de acesso direto é algo que modifica drasticamente a paisagem de quem vem para o museu apreciar um espaço organizado. Considero que a intervenção da arte não tem muito a ver com a ordem e organização. Os museus mostram a cara da arte que a todo mundo convêm ver. A comodidade das pessoas para assistir uma mostra, uma peça ou qualquer tipo de obra de arte é a mesma que a dos artistas para expor a obra.
Tomar banho na grama do museu não é algo comum. Mas fala muito bem dos humanos e da humanização dos espaços que congelam a nossa parte mais natural do ser. 
Saimos andando com o Fran e vamos novamente para a praça da Cinelândia, onde encontro um grupo de moradores de rua sentados na frente do Amarelinho, lugar onde o rango depende dos clientes do restaurante que pedem suas sobras numa quentinha e entregam nas mãos de algum morador sentado nos bancos verdes da praça. Entre a galera está minha tia adotiva, a Patricia.  Ela entrega em minhas mãos a primeira comida do dia, uma quentinha com arroz, feijão e macarrão morno. Falo morno porque geralmente essas quentinhas vêm frias. Passa um pouco a minha fome. 
Patricia é uma mulher de 35 anos, ela tem 11 filhos e o menor está o tempo todo com ela. Seu nome é Mateus. O Mateus é simpático e gosta muito de mim; é magrinho e carequinha de olhos verdes. Entre tantos adultos, o garoto aprende a ser esperto na escola da malandragem carioca, a pista.
Peço permissão para a tia Patricia para levar o Mateus ao CCBB.  Queremos transformar esse dia em alguma atividade diferente. 
Chegamos lá e na entrada sua cara de assombro domina meus olhos. Ele está achando que estamos num parque de diversão, é o seu parque de diversão. Uma casa enorme rodeada de dourados e imitação de cristais que rodeiam uma lâmpada. Um centro cultural que entra pelos olhos e vende, vende, vende, inevitavelmente, a arte.  No meio disso tudo, a inocência de uma criança que mora nas ruas. Tudo pode ser surpreendente nesse lugar, mas a brincadeira do elevador é a sua melhor diversão. A contra-cara do capitalismo, da arte e da vida mesma é refletida na visita ao centro cultural brasileiro.
Voltamos andando em baixo da chuva, dia cinza. Mateus quer cruzar a rua para ver a fonte da Candelária. Ao lado da fonte, uma cruz com 8 nomes escritos. Eu sei muito bem do que se trata esse simbólico monumento. A cara de Mateus era de dúvida, não entendia o porquê quando expliquei que nesse lugar haviam matado 8 crianças que dormiam nas ruas. Ele ficou com sua carinha de dúvida até chegar à praça Cinelândia e encontrar com sua mãe, a tia Patricia. O primeiro que ele conta para ela é do monumento, e tenta explicar que a polícia foi a responsável pelo acontecido no local. Ele pergunta muitas vezes porque isso havia acontecido, mas a realidade é que nenhum de nós tinha uma resposta satisfatória para a criança. 
Corpus Cristhi, polícia, cultura, crianças assassinadas, dia cinza. Um dia que não prometia muita coisa pra contar, minha cabeça se enche de estórias. Me é difícil identificar momento por momento e de cada um deles nascer um questionamento, porque é a vida na rua que está em constante questionamento. Porque é a sobrevivência e o pensamento dessa sobrevivência que está em mim enquanto estarei na pista.

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