sexta-feira, 15 de junho de 2012

Dia de começar e esticar


De madrugada, somos interrompidos pelo frio, ele chega lentamente com o vento e se agarra nos meus ossos. O frio do Rio se percebe diferente deitado neste espaço de intervenção novo para a gente. Pegamos umas madeiras que tinham a estrutura de cama, sobre ela papelão para amortiguar e por cima dela nossos corpos que usam só suas roupas de proteção. Gil ao lado meu, os dois somos interrompidos novamente, mas esta vez, por parte de um morador de rua. Ele acorda a gente, quase como assustando. Pergunta se estamos bêbados, respondo que não. Pergunta se moramos na rua, prefiro responder que sim. Ele sai e continuamos durmindo na espera de amanhecer e dar 9h para ir a tomar nosso café da manhã na igreja evangélica Cristolândia.

Nesta quinta-feira, 14 de Junho, estamos durmindo, e somos acordados por ruídos de vários homens uniformizados com a cor azul, parecem de limpeza da loja. Sem pedir, todo o mundo ao nosso redor sai do lugar. Ficamos só eu e Gil. Acordo-o para sair desse lugar, me sinto sem proteção já que estamos sozinhos. Vemos a uma tia que conhecemos o dia anterior na “Cristolândia”, pedimos para ela um cobertor, e ela nos dá um.

 Pegamos nossas enorme madeiras e as abandonamos no caminho, indo a procurar uma praça. Chegamos à pracinha da escola Municipal Rivadavia Corrêia. Vemos que tem um pessoal deitado durmindo lá. Armamos nossa cama na grama e nos deitamos também.

Numa hora escuto a voz de um homem, ele nos acorda e pergunta que estamos fazendo lá. No medo de achar que era a guarda municipal ou o choque de ordem, me levanto. Tento acordar rapidamente o Gil e junto minhas coisas, saio andando de pressa. Já é hora de fazer a fila na Cristolândia e estamos perto. Chegamos na porta da igreja e formamos fila.

Na entrada já reconhecem a gente, pedem que bote só meu sobrenome, meu nome já lembram. Hoje a igreja não oferece café da manhã, só terça e sexta.

Começa a música, fazemos nossa intervenção cantando, batendo palmas e dançando. O culto começa. É um pastor diferente. Gil lê um livro. O Pastor pede para acordar a todo mundo que está dormindo e para Gil parar de ler o livro. Gil se nega a príncipio, logo depois cede, sabemos onde está o forte de nossa intervenção nesse lugar.

Somos chamados a tomar banho. Subimos as escadas em direção ao grande quarto de homens onde vários jovens são internados em recuperação ou, como eles chamam, em “transformação”. Tomamos nosso banho e entre brincadeiras e conversas com os meninos, percebo o olhar constante do menino que ontem me deu um piscar de olho. Ele me observa fixamente, comento com Gil, que nota a mesma coisa. Saimos do quarto, descemos as escadas e vamos embora. Chegamos ao Campo de Santana, esticamos nosso corpo na grama e deitamos para um cochilo. Gil aproveita para escrever enquanto eu durmo.

 Acordo, chego a observar os homens e mulheres sentados nos bancos da praça que entre animais, árvores, grama e outras pessoas passando, praticam a prostituição. Observo as estratégias, os olhares, gestos entre os que serão seus clientes. A praça tem tesão no ar, tem energia sexual que motiva os animais a se aproximar para manifestarem sua necessidade fisiológica, o sexo.

Vamos andando em direção à casa da Pati, nos reuniremos para organizar a intervenção de Ocupa Rio, em confronto com o Rio + 20 e a Cúpula dos Povos. Fico na reunião um instante, são as 15h38, vou andando para a Casa França, onde vou escrever o diário de hoje. Indo para lá, penso nas nossas intervenções na rua, sem saber que somos atores de uma performance constante, onde a cidade se converte no cenário. Escrevo o diário com esse pensamento e envio para a Debo para fazer as correções.

Eu saio da instituição artística, que oferece duas máquinas com internet de graça. Vou em direção a praça Paris onde o movimento fará a intervenção. Chego lá e crio um cartaz com o nome do projeto Paz Na Pista. Fico falando com os participantes, muitos conhecidos. De repente, escuto chegando uma figura muito querida por mim, o “Chapulin”. Ele, o Chapu, como eu gosto de chamá-lo, é um artista de rua, poeta e performer punk, juntos pertenecemos ao coletivo AnarkoFunk. Ele chega com sua fantasia de palhaço.

Começo a ter muita fome, falo para o Chapu que vou a sair para pegar uns salgados de graça, ele me acompanha. Vamos andando, neste momento me sinto num video-clip, andando na pista com um palhaço. Sinto que poderia ser uma ótima ideia para criar algum material artístico como um vídeo, mas não comento nada com ele, fica na minha cabeça.

Fora da lanchonete nos encontramos com os artesãos Chile e Felipe. Felipe é um menino que sempre que encontro está acompanhando o Chile, ele deve ter uns 20 e poucos anos e é de Porto Alegre.
Ficamos todos juntos na fila, vou cumprimentando as pessoas que conheço. Pegamos nossas sacolas e compartilhamos entre os quatro os salgados, trocamos de tipos de salgados. Vamos andando até a praça dos Professores,  onde vai rolar mais boca de rango. Lá, peço para Chile criar um calendário de Bocas de Rango. Dou um caderno para ele e escreve...

Bocas de Rangos (pelo Chile)

Segunda-Feira

Café da manha: Praia do Flamengo 7 a 8 hs
Almoço: Restaurante Popular o “Garotinho” (R$1)
Janta: Bolsa Automoveis, Praça dos professores, Castelo, Farol da Lapa

Terça-feira

Cafe da manha: Campo no Flamengo,Igreja Nova Vida (Central)
Almoço:  Cristolândia, Garotinho, Farol da Lapa
Janta: Caixa Cultural (18hs), Praça dos Professores

Quarta-feira

Café da manhã: Restaurante Popular (R$0,35)
Almoço: Cristolândia, Restaurante Popular (R$1)
Jantar: Praça dos Professores, Farol Lapa igreja

Quinta-feira

Café da manhã: Metrô Carioca, Farol da Lapa e Cristolândia
Almoço: Cristolândia
Janta: Praça dos Professores

Sexta-feira

Café da manhã: Cristolândia, Restaurante Popular (R$0,35)
Almoço: Cristolândia
Janta: Farol da Lapa, Praça dos Professores.

Sábado

Café da manhã: Catedral (Centro)
Almoço: Praça Cruz Vermelha (10hs)
Janta: Praça dos Professores

Domingo 

Café da Manhã: Catedral, Igreja Nova Vida, Farol da Lapa.
Janta: Candelária e Praça dos Professores

Obs: De segunda a sexta tem salgados, às 19h30, na velha igreja da rua Miguel Couto.


Um comentário:

  1. Quando morei nas ruas de Belo Horizonte, com o tempo, acabei fazendo um roteiro para conseguir o rango do dia a dia, parecido com que o Chile fez. Vários moradores de rua também faziam esse roteiro, entre igrejas evangélicas, centro espíritas e algumas igrejas católicas também. Essa ajuda toda tem um lado positivo, claro, mas também tem um negativo, pois estimula as pessoas a morarem nas ruas, pois, como vc disse, algumas pessoas optam por morar na rua, simplesmente pelo fato de gostarem de vivenciar essa situação. Eu mesmo já me questionei se não vale a pena voltar a morar na rua, pois aonde moro não tenho a paz que tinha quando morava nas ruas.

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